Enfim recluso

Desde muito jovem mostrava uma tendência, uma aspiração até, para o isolamento. Preferia fantasiar sozinho no quintal de casa do que brincar com os meninos na rua. Depois quase abandonei os estudos para embrenhar-me na floresta. E fui, num trabalho temporário. A dura realidade amazônica desiludiu minha origem demasiadamente urbana. Logo desisti do sonho selvagem. Embora a origem urbana e a natureza selvagem pareçam nunca ter se conciliado.

Resignei-me na cidade, com fugas ocasionais para as lonjuras, favorecidas pela profissão de geólogo. Agora, aos sessenta e oito, aposentado, sonhava debandar para um ermo onde pudesse plantar e colher, remar em águas calmas, contemplar a chuva abençoando a folhagem das árvores, observar pássaros ariscos e perseverar conquistar-lhes a confiança e a amizade, aprofundar a mútua fidelidade com a cachorra, ler, escrever...

Mas a providência não quis assim. Encontro-me, sim, enfim recluso, isolado. Em minha própria moradia, na cidade. E recluso junto com a esposa que me atura há trinta e três anos, o filho de vinte e sete e a mãe de noventa e quatro. Estamos interditados, a quarentena forçada pela Covid-19 só quebrada para a busca de alimentos no supermercado, de remédios na farmácia e visitas ao médico.

Curiosamente, justo eu, o quase ermitão, pareço ser o que mais busca interação nesta casa de reclusos. Meu filho, preso ao computador, rejeita os convites para jogar xadrez, cartas e tênis de mesa, e para fazer exercícios de Tai-Chi. A esposa também, prefere a companhia das séries policiais da TV e do celular, que já apelidei de Ricardinho. Vai deitar-se com ele, é o primeiro a quem diz bom dia. Minha mãe adora jogar cartas, a única coisa que a saca da inércia completa. Mas num mutismo e numa alienação de idosos que apartam mais que o distanciamento.

Mas todas as situações trazem suas esquisitices; esta também trouxe. Se não podemos sair, e confinados nos recusamos a interagir, apareceu alguém que logo ao raiar do sol, e depois várias e imprevisíveis vezes ao longo do dia, vem bater à nossa vidraça. Parece querer trocar sua liberdade lá fora pela reclusão conosco dentro de casa, neste ajuntamento de solidões. É um bem te vi, que neste exato momento em que escrevo, pôs-se de novo a bicar o vidro espelhado da vidraça da sala, creio que atraído por sua própria imagem refletida.

Estaria numa atitude agressiva em disputa territorial com um suposto rival? Ou de galanteio com uma presumida pretendida? O toc-toc das bicadas e as sucessivas frustrações do belo pássaro enternecem. Contagio-me com sua decepção. Parece que nos irmanamos no isolamento que nos é imposto pelo vidro fechado, iludidos pela imagem de uma companhia.

(texto escrito em abril de 2020).