Catorze dias faz

Catorze dias faz que eu só conjugo o verbo "fazer" no sentido de tempo decorrido, na impessoalidade benfazeja, amiga e afetuosa que conduz o verbo fazer a uma feitura. Nem sempre foi assim. Antes desses últimos catorze dias, minha relação com com o verbo "fazer", à luz da Gramática, era personalíssima e desabonada; contudo, os meus mais próximos não me tinham por transgressor gramatical nem chato. Antes desses catorze dias, toleravam-me as falas desconjuradas e a escrita arredia de quem, buscando desanuviar uma informação, desrespeita as recomendações oficiais gramaticais da norma padrão FIFA de comunicação.

Catorze dias faz que me tornei arauto gramatical e um chato de carteirinha. Os meus mais próximos andam me evitando deliberadamente, e creio que procedem bem. Não é normal não seguir catorze dias na impessoalidade do verbo "fazer". Falar à moça balconista do TodoDia que "faz anos que desconheço a diferença entre ted e doc, crédito e débito, atacado e varejo" e receber dela aquele olhar de quem mentalmente refaz a sentença gramatical, pondo os pontos nos is, não tem preço, mas tem sensação. A sensação de quem é pego em público tirando meleca do nariz, escavacando dente, estralando dedos, falando sozinho.

É vexatório, admita-se, porém não é grave, quando o que se busca é aproximar o fato da ideia e, assim, num momento de interação social, familiar e arredores, entrelaçar sentidos. Catorze dias faz que deveria ter praticado esse ponto de vista; catorze dias faz que deveria ter pluralizado aquele "fazer". Talvez, se tivesse dito à moça balconista do TodoDia que "Fazem anos...", ela compreendesse melhor meus desconhecimentos pós-modernos. Mas não o fiz, e catorze dias faz que estou lhe devendo essa dívida vernacular.

É verdade que tenho dívidas capitalistas, que não as tem, não é não? Ainda mais nos dias de hoje. Como evitá-las e continuar alimentando-se com arroz? Eis uma pergunta digna de reunião na Convenção de Genebra. É verdade que tenho dívidas capitalistas, mas as gramaticais são as que mais me incomodam, embora não exponham meu nome e CPF no SPC/Serasa, ante a opinião pública, deixam-me em nu gramatical.

Catorze dias faz que eu deveria não me importar com isso. Afinal, para que server a opinião pública? Por acaso a opinião pública contribui com o fim do analfabetismo, da fome, da violência? Por acaso a opinião pública faz baixar o preço do arroz? Por acaso a opinião pública não é uma opinião política?

Catorze dias faz que eu deveria deixar de conjugar o verbo "fazer" na impessoalidade. Catorze dias faz que eu deveria voltar a vista aos buracos que cobrem minha cidade, às ruas escuras que lhe iluminam o caminho e, quem sabe, expedir carta ao senhor prefeito, expondo-lhe minha opinião política, que se iniciaria assim: "Prezado: Fazem anos...". Catorze dias faz que a moça balconista do TodoDia espera retratação gramatical. Faz catorze dias que ''fazer" deixou de existir.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 26/09/2020
Reeditado em 26/09/2020
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