Me levaram 50!
Estando em Campina Grande, interior da Paraíba, um dos passeios favoritos de domingo é ir à Feira da Prata, território mágico e histórico da cidade, sinônimo de alegria e luta de um sem número de trabalhadores que em uma curiosa harmonia com seus frequentadores e clientes, compõem um cenário onde os símbolos e sinais se fundem em uma textura de vários elementos que se sobrepõe em estética e poética, resistindo ao tempo de maneira inesgotável. Sua geografia histórica remonta fins da década de 1950 quando um grupo de duas dezenas de feirantes se uniam às quintas e domingos para comercializar os produtos excedentes da Feira Central, exatamente nos dias seguintes aos “dias de feira” que eram as quartas e sábados. O lugar da minifeira era o largo da Av. Barão do Rio Branco, em um terreno ali do lado da atual feira.
Todas aquelas terras constituíam a Fazenda Prata e foi adquirida por Raimundo Viana em 1925. Em 1946 ele cria o loteamento que em 1953 já é conhecido como bairro. Viana doou terrenos para a construção da Igreja do Rosário, do Senai e do Colégio Estadual da Prata, vendendo o restante das quadras. Aproveitando a minifeira, constrói o Mercado da Prata. Ao redor da construção a feira cresceu sobre uma terra vermelha, um saibro com seu chão pintado de frutas, verduras e sonhos, crescendo a cada dia. Em 2006 passou por uma reforma que mudou parte de sua configuração, mas não extrapolou sua identidade. A cercaram com um gradil, mas se engana quem acha que pode conter o ímpeto de uma feira livre. Transgredindo o trânsito de ruas adjacentes, a feira cria seus próprios códigos e espaços. Um de seus lugares mais curiosos é a feira de trocas, que continua sendo na Rua Duque de Caxias, se espraiando até a Av. Getúlio Vargas. Um pedaço de rua que se insere na cartografia da feira como lugar para onde aflui vendedores de qualquer coisa. Quando Hildeberto Barbosa diz que a feira é um “museu sagrado de tudo”, me lembro sempre dessa feira de trocas.
Nas proximidades do meio fio estão dispostas as tendas e barracas formando duas fileiras. No centro, estão algumas lonas ao chão com todo tipo de produto em cima. Desde reparo de descarga, peças de auto, carimbos velhos até eletrônicos; de livros a LP’s e alguns produtos sazonais, de origem geralmente duvidosa. Essa configuração forma dois corredores que geralmente é um subindo (lado direito) e o lado esquerdo para quem desce. Assim todo mundo vê tudo que tem ali. Há também aqueles que tem uma única coisa que queira vender e acompanha o rebanho de curiosos oferecendo “pelo menor preço”.
Certa vez, fui subindo e na metade da rua algumas pessoas me empurraram, correndo. “É briga, é briga!”; nesse impulso, minha chinela de couro fica para trás, quando vejo está sendo pisoteada pelos dois brigões. Todos olham, um sem camisa e com vários cordões, faz vários golpes de boxe no ar, como a intimidar o oponente. Ambos estavam além das primeiras doses e nenhum tapa ocorreu até uma voz dizer: “olha a polícia!”, esse agente totalmente indesejado naquele lugar. Cada um sai para um lado evitando tumulto, como se nada tivesse ocorrido. Resgatei meu chinelo e voltei. Foi quando parei em um tabuleiro de 2 palmos em cima de caixotes com cartas de baralho emborcadas, o dono da banca com notas de 50 e 100 entre os dedos, à moda de cobrador de ônibus, chamava: “– Quem vai?”. Ao redor, duas senhoras e dois senhores. Parei do lado, assim como parou outro rapaz. Uma das senhoras com lenço na cabeça, uma sacola nos braços e voz lenta e chorosa: “– Eu quero jogar 50”, quando ela puxa a carta é um ás de ouro, ele dá o dobro a ela, 100, portanto. Ela diz que quer novamente, o moço de chapéu embaralha e diz: “–Vó, não jogue o dinheiro da feira pra não perder...”, ela acerta novamente. Recebe mais 100, o dono embaralha as cartas e se vira para falar com alguém. Nesse momento, um dos senhores que lá estavam, pele trigueira, camisa aberta, palito no canto de uma boca grande encimada com um farto bigode, pega a carta e faz uma orelhinha, dobrando um dos cantos ao tempo em que olhava para mim e piscava o olho, como a dizer: enganei o otário aí. Ali estava a dica do bom jogo... O moço voltou, misturou de novo e virou a dita carta da felicidade, justamente a marcada com uma pequena orelha: “– Olha aqui pessoal, quem vai...”. E não é que eu fui...
Ele embaralhou, eu dei os 50. Fui na carta com a orelha, era um 4 de paus... “–Próximo...” disse o dono da banca. Daí entendi que todos aqueles eram personagens de uma artificiosa tramoia. Sem graça e sem os 50, fui até o bar de meu amigo Cunha e, sorrindo, falei do ocorrido: “– Mas professor, cair numa coisa dessas...”. Me restou tomar uma “lapada” e ir para casa.
Já pensou?