Nossas vidas, nossas gentes.( ainda o cozinheiro Francisco)

Só quem viveu em África e teve-a sob pés descalços, quem a abraçou e por ela um dia chorou, pode entender uma infância que parecia eternidade, hoje transformada em saudade.

Nasci numa cidadezinha pequena e familiar entre o deserto e o mar ao sul de Angola, Mocâmedes. Vivi num oásis encantador e próspero de passarada nos pomares, campos verdes e gado às margens do rio Bero, onde o coração batia apressado e se caminhava sem sentir cansaço.

Só quem nasceu em África sabe, como nós, o que é montar uma zebra na infância, criar um elefante bebé num pequeno quintal da casa e alimentá-lo a leite condensado enquanto uma turma de amigos tentava tirar-lhe um espinho enorme enterrado na pata. Só quem lá viveu sabe, como eu, o que é alimentar um Olongo bebé num cômodo da casa de piso de madeira impecavelmente encerado acreditando que milagrosamente ele não cresceria( a dimensões de um cavalo) e nunca mais sairia dali .Só quem sentiu aquelas terras sabe o que é correr atrás de macacos pelo meio das ruas e tentar pegá-los com palavras carinhosas no tetos das casas para que calmamente pudessem voltar ao local onde estavam protegidos. Só quem lá morou sabe o que são cágados do deserto e o que seria necessário fazer para encontrar seus caminhos de fuga em buracos escondidos no areal e quintais das casas . Só nós vimos um balet no deserto ,em pulos elegantes, de lagartos a evitar queimar as patinhas naquelas areias escaldantes .

Só quem lá viveu sabe o que é acordar ao nascer de sol com um céu em tons amarelo-avermelhado olhando a corrida desenfreada de animais selvagens logo nas primeiras horas da manhã à procura de pastos e água debaixo de sol ,já alto e ardente ,entre dunas e planícies do tamanho do mundo.

Só nós subimos em dunas em forma de lua crescente, algumas de mais de 3 centenas de metros que a gente imaginava poder tocar o céu.

Só quem viveu naqueles tempos, naquelas terras , conheceu valores tão fortes de respeito e amizades tão belas quanto ela mesmo. Onde, em algum outro lugar as pessoas respeitavam seus amigos e vizinhos como se da mesma famila fossem? Poucos, muito poucos. E tantos de lá, aqueles que nos serviram em nossas casas , fazem parte dessa história!...

O cozinheiro Francisco descendente de antigos escravo pertenceu a esta grande família. Quando ainda um rapaz bem novinho, trabalhou na casa do Sr Serra, avô do nosso amigo Vitó Torres. Era tão fiel e tão dedicado à família que não saia de casa.Sentava-se num banquinho a olhar para eles quando não havia serviço a ser feito. Um dia pediram-lhe que fosse dar uma volta pois estavam cansados de olhar para a cara dele. Esta brincadeira saiu cara à família. Perderam o cozinheiro. Ele saiu, deu uma volta mas passou na casa dos meus padrinhos Dr Trigo e Dna Alice que se tornariam seus patrões até ao fim mas, quase não teve sucesso pois as filhas, Marília e Luisa ainda muito pequenas se assustaram ao ver aquela figura .à primeira vista tremendamente assustadora: um homem negro enorme , um gigante esguio, magríssimo , cheio de bexigas no rosto mas que, ao se lhe observar atentamente os olhos poderia ser vista uma alma enorme, terna, amiga , alguém que se tornaria com toda a certeza mais um membro da família.

_ “Muito bem, Francisco, então és um bom cozinheiro e queres trabalhar aqui em casa.E onde trabalhaste até agora? ”- perguntou-lhe minha madrinha.

-“Na casa do Sr Serra e pode lá ir saber como sou bom ”.

-“Sim , vou lá amanha e acertamos tudo, sim?”-disse ela

-“Não não. A senhora vai agora e eu tomo conta das meninas”- respondeu.

Lá foi a minha madrinha a mando do Francisco.Ela não poderia empregá-lo sem o consentimento dos amigos.

As informações foram das melhores e ele conseguiu o emprego. Fidelidade total. Nunca tirou férias . Só tirava um ou dois dias no ano para refazer a palhota da família. Até os cães da casa eram tratados como se dele fossem. Lá ia o Francisco quase que diariamente ao matadouro da cidade buscar uma cabeça de boi para fazer-lhes as refeições acompanhadas de fuba. Pedia na cooperativa da cidade aqueles latões grandes que armazenavam chouriços em banha , latões também de manteiga e margarina que vinham da Metrópole, e ali cozinhava as cabeças de boi. Às vezes havia sobras de manteiga e a minha madrinha queria que ele levasse para os filhos, ao que ele retrocava:

- “Não , não senhora. Então não sabe? Se eles comem pão com manteiga uma vez nunca mais o querem comer sem ela. Não, não!”

Era sábio, o Francisco!

Lana

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Teresa S Carneiro
Enviado por Teresa S Carneiro em 25/09/2020
Reeditado em 25/09/2020
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