Imagem: Virgílio António
Por um amigo português, ipsis litteris.
Não sei
Não sei se houve casamento com os convidados a esconder as apreensões na lapela, a ocultar o cancro debaixo da casaca, a deixar o sorriso trocar o código à mesquinhez, o batom a dar sangue a presenças anémicas, os copos de confeção barata com as marcas da gordura no rebordo, os guardanapos a servirem para o toureio dos animais mortos, a diligência postiça dos empregados contratados à peça que fecham o rosto assim que viram costas às mesas e regressam à copa a rosnar, o olhar míope que foca o rótulo da garrafa de vinho e reclama das castas, o tecido que falta no abdómen que prometeu ao espelho iniciar a dieta, tu e ele seriam ainda jovens.
Não sei se houve a festa e os noivos a receberem as felicitações dos participantes que minutos antes ciciavam as apostas de que num ano, no máximo dois, estariam divorciados. As flores da sala de refeições traziam a falsa sensação de primavera ao jeito dos odores perfumados que se juntam à descarga de água e trazem às sanitas a ideia de mar. Talvez não tenha havido igreja e o padre a sibilar o eterno matrimónio sob a vigilância benigna de um Deus que cuida dos afazeres domésticos. É possível que a cerimónia se tenha resumido a uma assinatura formal testemunhada pelo representante do Estado, o civil vestido no mesmo fato de sempre, com a gravata cansada de ser chamada para o pescoço mais velho, mais gordo.
Não sei se houve amor, sim, se riam um para outro sem a necessidade dizer alguma coisa divertida, se a afeição mútua dispensou os truques conhecidos daqueles que desejam apenas fruir o corpo alheio, torna-lo sua posse, invadi-lo para instaurar uma praça com padrão, uma feitoria em que se pudesse comerciar as especiarias nascidas em territórios jovens, férteis, irrigados nas estações quentes que também não se sabe em que mapa realmente existem. Quiçá fosse mais um apego colado ao tipo de fantasia romanceada num dos filmes que juntam destinos traçados para serem tão distintos, ele a sair de casa com os sapatos a pisarem a doçura, a geometria e as cores derramadas pelos artesãos dos tapetes persas estendidos em contínuo no amplo hall de entrada lá de casa e ela na casita arrendada a lavar o cabelo na bacia de zinco pousada na pequena banca de cimento da cozinha.
Não sei se era possível o namoro juntar num teto a casa grande e a senzala metropolitanas, enquanto lá longe os rapazes tatuavam os amores nos braços, amor de mãe, amor de puta, qualquer um que se pegue à pele com o suor extraído dos seres mal vivos por esse sol tão próximo que cega e que queima e os deixa loucos de febre nas planícies africanas. Precisava de ti para comentar os livros que davam vozes ao silêncio das noites, para estar certo do eco que salva as palavras da sepultura, para que sobreviva a exaltação quando essas frases se misturam e se embebem nos whisky que chegavam à messe do quartel para obter o mesmo efeito sedativo que teriam na enfermaria. Maçadores esses papéis com personagens estranhas a quem não lhes podias cheirar o sabão das camisas que vestiam ou a cera dos corredores por onde andavam, talvez olhasses mais vezes para as dedicatórias com o diminutivo ternurento que ele preenchia na folha em branco e usava para te nomear no endosso da obra literária que quereria que trouxesses na mala de senhora, que ali fosse companhia do urso que segura as chaves e que estranhou no fim da estação fria a pelúcia que o cobria.
Não sei de onde vem esta solidão apenas intervalada pelo bailado monótono do peixe, um rasto de casca de laranja que o acaso universal colocou no aquário e que às vezes parece que interrompe o caminho para lugar nenhum e olha para ti e julga que estás presa às pequenas voltas que antecedem o regresso ao sofá em que se sentam desmaiadas as cores que se esgueiram do ecrã da televisão. Tens as peças antigas espalhadas pelas divisões da casa a parecer que o tempo não passou e se quedou na moldura com a fotografia do vestido de renda em que és a criança que o pai protege da zanga da mãe, persistem dependurados os móveis da cozinha que não quiseste trocar, com as portadas a sofrer de reumatismo, os galos de Barcelos continuam mudos e a pilha morta no coração do relógio faz esquecer que as horas passam.
Não sei de que eram feitas as tuas esperanças, o que moldavas no barro nas aulas da escola, ou se ficaram entretidas no repetido ponto do bordado, se foram adiadas para o longínquo dia de amanhã, esquecido o dia de hoje, afinal o que conta. Desta vez queres fazer as coisas bem, dar o abraço na hora certa, dizer o quanto gosto de ti, inverter a interdição que a maldade ou o medo fizeram recair sobre nós. Afigura-se tão simples transformar o que antes era impossibilidade e no fim da tarde quente do que parecia um verão eterno a brisa antes morna do crepúsculo engrossa e sacode o corpo como um chicote frio que recrimina o dorso incauto perante a frescura dos dias que fecham setembro.
Não sei se houve canções que faziam prever a prosperidade, melodias benfazejas a lembrar o chilrear de aves que adivinham boas colheitas, ou se o artista subiu ao palco e trocou a letra do tema que costumavam entoar e que por ser já conhecido cantavam-no a par por cima da emissão da rádio. Outrossim, os sinais assinalavam a prudência necessária antes de atravessar a linha férrea. Fazer o passado confessar. Nunca sabendo se diz a verdade, o depoimento pode estar transtornado de nostalgia, bêbedo de saudade. Fazer-te recordar das gravidezes, das crianças a chorar de fome, ele chegará num voo para Lisboa, os Natais repletos a fintar as dificuldades, as viagens estragadas por caprichos, os jantares que se precipitavam para o abismo, desfiladeiro em que a compreensão recíproca perde o pé e não há um galho a que se possa agarrar na descida.
Não sei se houve casamento, se houve despedidas demoradas a pesar como pedras nos bolsos do casaco, com promessas de amizade sem valor para comprar o pacote de arroz e as pétalas que ninguém consegue provar que existiram, com os motores dos carros a imitar as disfunções digestivas, o dia a dizer adeus e a pintar a noite de núpcias, se é que houve essa noite, esse casamento, essas núpcias, todo o som que não cabia dentro do búzio, a memória do mar que não se confinou à praia.
Autor: Virgílio António - Portugal