Sobre 2020- Os números agora são nomes

Já era a quarta vez que lia a mensagem enviada por um grupo de amigos do WhatsApp. – “Morreu! Faleceu! Foi embora!” Depois de trinta dias lutando pela vida! Foi! Amigo da juventude, companheiro de ótimas farras, festas, amigos.... Os números que ouço várias vezes na mídia agora têm um nome. Não são mais 100, 320 ou 1000 óbitos em um dia, é o amigo, tem identidade, tem rosto, tem história, faz parte da minha vida, é real. Era uma pessoa que vivia, trabalhava e divertia como eu. Tempo de pandemia, de isolamento social!

Preciso falar com alguém, preciso dividir a impressão de estar em um filme de ficção, preciso saber o que as outras pessoas pensam e sentem. Preciso de um parâmetro de normalidade para validar a minha. Ligo para Denise, conversamos sobre coisas banais, a morte do amigo em comum é mencionada com afeto, mas bem superficial. Fazemos questão de deixar o outro bem distante e justificamos a morte com objetividade:

- “Será que ele fez isolamento? Será que foi socorrido na hora certa?” A conversa é rasa. Percebo que Denise também tem receio de falar, de expor seus medos. Fingir que está tudo bem e que o problema é do outro é uma maneira de proteger nossa lucidez e tranquilidade.

- “Estivemos juntos na comemoração de 20 anos de formatura em dezembro”, diz Denise, - “Conversamos, cantamos, dançamos. Ele não era grupo de risco. Estou chocada!” Termina. Eu ouço e tento encontrar um propósito, racionalizar, traçar uma história da doença e assim explicar o que aconteceu.

Novos tempos, dizem todos, novo normal, diz a mídia. Tento ordenar informações, ações e pensamentos na rotina de antes para tudo ser mais digerível...Tento sobreviver, tento principalmente não pensar. Não pensar na nossa vulnerabilidade.

Amanhece mais um dia e preciso fazer alguma coisa, sair da cama, planejar a vida, organizar o dia, me livrar desta sensação de que o tempo parou. Levanto, faço café, digo bom dia, engulo o pão, coloco o tênis. Mais uma reprise de ontem. Mais uma caminhada, o mesmo trajeto, a mesma playlist, o mesmo cantarolar, o mesmo esforço para não perceber a realidade, de não deixar o pensamento tornar tudo insuportável.

Realidade? Estamos no meio de uma pandemia convivendo com um vírus que se instala no nosso corpo, invade nossas células e se prepara para agir durante 10 a 14 dias. Mas neste período silencioso podemos infectar outras pessoas. Vivemos como se tivéssemos por cima das nossas cabeças a espada de Dâmocles sem saber o que, quem e quando o fio será cortado.

Sorrio pensando nas aulas de lógica em que aprendi que o conectivo “ou”, conecta tudo, mas não define coisa alguma. Com “ou” pode ser tudo ou nada. Ou adoecemos ou somos portadores sãos. Ou precisamos de um leito na terapia intensiva de um hospital, ou temos a forma branda da doença. Ou temos uma vaga no hospital, ou o hospital está superlotado. Ou temos o pico de infecção neste mês ou no mês que vem ou no outro. Ou temos o nosso emprego garantido, ou nosso patrão abre falência e não conseguimos outro emprego. Ou as escolas abrem para terminar o ano ou nossos filhos perdem o ano letivo. Tudo indefinido e sem chances de escolhas.

Chego agora perto do lago onde passo todas as manhãs. Vejo quatro patos na beira da lagoa e duas crianças tentando faze-los voar e cair na água. É um dia muito frio e os patos não demonstram vontade de nadar na água gelada. Eles resistem, ameaçam um voo e fogem em direção oposta à da água. As crianças riem alto e continuam correndo e encurralando os patos próximos da água. Os pobres patos não têm alternativa, caem na água e nadam deslizando calmamente, indiferentes ao barulho das crianças e à água gelada. Tento mais uma vez burlar a realidade, sento na beira do lago, divirto-me com a cena e penso na elegância dos patos ao serem forçados a viver uma situação não escolhida por eles, mas que enfrentaram com coragem e leveza. Talvez seja isto que me falta: agir como os patos ao invés de pensar como os humanos,

Márcia Cris Almeida

03/06/2020