Profissão de dar nome às coisas
Quando eu era pequeno, uma situação me deixava deveras incomodado.
Estudei numa escola em que os colegas se sentiam prestigiados ao saberem a profissão dos pais dos outros colegas. Também se sentiam cobrados, desde cedo, a desempenhar a mesma atividade familiar. Realmente, alguns colegas, espontaneamente ou não, seguiram a exata profissão dos seus ascendentes.
Meu pai, na época, era um comerciante em franca ascensão. Porém, nunca me senti pressionado a segui-lo. Pelo contrário. Meu dilema, sempre que me perguntavam sobre profissão, era responder com trabalhos não aceitáveis para quem estudava numa escola que nos preparava para gerir o capital – e não o questionar.
Acontece que um dia, nessa escola, a professora perguntou o que eu queria ser quando crescesse. Na ocasião, de forma espontânea e desenquadrada, respondi que queria ser “profissão de dar nome às coisas”.
Todos os colegas riram - e, inclusive, a professora! Por essa (e outras), adquiri um certo trauma com profissões, que carrego até hoje.
Assim, nas outras ocasiões, com a intenção de diminuir meu constrangimento diante dos coleguinhas, passei a dar outros nomes para a “profissão de dar nome às coisas”. E, de alvo de chacota, passei a espantar meus colegas.
Certo dia, disse que seria o que se chamava na época de “lixeiro”, porque era o nome que se dava aos trabalhadores que viviam em movimento, com um olhar de exaustão, mas que se faziam notar pelas palavras debochadas que davam aos transeuntes. Ademais, esses homens recolhiam tudo o que, reproduzido e usado mecanicamente, não possuía mais valor reconhecido e que, por esse motivo, recebiam o nome de lixo pela sociedade. Achava que esse exercício se assemelhava a “profissão de dar nome às coisas”.
Ingenuamente, pensava que meu problema era apenas questão de dar nome à própria profissão. E que, tão logo cumprisse a tarefa, eu seria incorporado ao vocabulário elogioso de meus colegas. Deram palavras de nojo a profissão e riram de mim!
Ano depois, em outra aula, para não cair novamente em desgraça, tive a ousadia de tentar dar outro nome à “profissão de dar nome às coisas”. Respondi que seria entregador de galão de água. Explico. É que naquela época entrava em moda esse tipo de acondicionamento de água, que era fornecido de caminhão por um motorista-entregador. O “rapaz da água” era um tremendo zombador! Porém, usava habilmente as palavras, bonitas e faceiras, que dava à moça que cuidava de mim.
Imaginei, então, que o mais acertado era o que eu estava fazendo: desassociar “a profissão de dar nome às coisas” daquela em que se recolhe objetos desprezados nas ruas, para vinculá-la ao trabalho que usa as palavras para dar os elementos mais vitais às pessoas: água e fogo. Mais uma vez, fui alvo de toda sorte de zoação.
Passados os anos, naquela que prometi ser a última vez em que tentei dar nome à própria “profissão de dar nome às coisas”, conheci o auge do desprezo. Falei que seria operário da Companhia de Abastecimento de Água e Esgoto.
Na época minha rua estava em obra para que se fizessem o tal manilhamento. Durante mais de 2 semanas fiz amizade com um trabalhador da empreitada. Eram dias de conversas à fio antes de ir para a escola, enquanto ele abria aqueles buracos, colocava manilhas e, depois, repunha os paralelepípedos da rua.
Na minha ingenuidade, achava que a função daquele moço era trabalhar as palavras duras e secas que ouviu em sua infância no interior da Bahia. Ele, ao passo que cavava um buraco fundo, contava as memórias do sertão, onde a palavra mais dada às coisas indicava a própria falta dessas coisas: fome. Não vi trabalho mais digno com as palavras que aquele que sequer as escondia, as permitia sair, para que fossem não à seco enterradas, mas escoadas pelas águas da rua manilhada.
Foi traumático, porém, ao mesmo tempo, pedagógico. Lembro este ter sido o último momento que, por causa da profissão, fui alvo de brincadeiras de mau gosto – já que ainda não dávamos a isso o nome bullying.
Desde esse dia passei a ficar quase mudo em sala de aula. Só utilizava a palavra “presente”, porque seria mais zombado se não respondesse a chamada. De mim, não se ouvia mais nada além dessa palavra, que nasceu para ser dada nos momentos em que se está em distração e, portanto, ausente. Calei, não por vacilação, mas porque eu continuava querendo a mesma “profissão de dar nome às coisas”. Apenas, os nomes que eu aprendia a dar aos meus colegas, eu sabia, não podiam ser pronunciados em voz alta.
Carreguei essa contradição durante anos. Porém, hoje, escrevendo esse desabafo, entendi que o que eu obro é uma espécie de força originária: antecede às coisas que têm nome e, por isso, não se doma no mundo do trabalho. Não inscrito nele, tampouco está em contradição, ou se concilia, com o seu oposto, o capital. Despreza e deturpa-o.
Demorei anos e estudos para perceber que o que eu labuto não tem nome, senão enquanto seu próprio enunciado: profissão de dar nome às coisas. E, por escapar aos enquadramentos laborais vários, arrisco: é um trabalho que já nasce em negação e, por isso, potencialmente revolucionário.