Histórias hilárias de um cozinheiro filho de escravos.
Nasci numa cidade pequena ao Sul de Angola, Moçâmedes, adoravelmente familiar e de histórias encantadoras por quanto , e tão incríveis que eram continuam até hoje sendo contadas e permanecerão, acredito eu, enquanto pudermos conversar uns com os outros.
Histórias de muitas vidas que não se esquecem.
Venho de uma família cheia de tradições e valores assim como eram outras tantas que conviviam conosco como se da mesma família fossemos. Mas havia especificamente uma com laços especiais de amizade e amor ao ponto de quase ter existido um acordo “fechado” para compromissos de convites de padrinhos e afilhados, por várias gerações. Nós, e a família Trigo tínhamos esse compromisso. Eu, já da geração intermediária, tive como padrinhos o Dr Elias Trigo e sua mulher Sr Dna Alice Trigo. Apesar de terem se mudado para Luanda ainda na minha infância, tenho coisas muito marcantes na memória como por exemplo o maravilhoso cozinheiro da casa, Francisco, filho de antigos escravos. Um homem enorme, alto, horrorosamente feio mas uma pessoa muito, muito boa. Era um cozinheiro de “mão cheia”. Como os negros nativos eram bons na cozinha! Também tive em minha casa ótimos cozinheiros ao ponto de nunca terem sido dispensados mesmo após dois ou três anos de férias nos seus Kimbos. Voltavam como se nada tivesse acontecido ;um ingênuo retorno ao trabalho após férias “rápidas”. Ao 1º de todos , o “cozinheiro” como era conhecido por nós, ainda muito pequenos por não sabermos pronunciar –lhe o nome, a minha mãe perdoava-lhe até os eternos problemas com a bebida, infelizmente constantes. Mas valeu a pena , não tivesse sido ele o melhor dos melhores. Eu, tanto quanto meus irmãos e amigos lembramos até hoje de seus pasteis de massa tenra com recheio de carne. Lembro-me da figura dele sentado na soleira da porta da cozinha aos murros à massa dentro de uma enorme vasilha.
Depois vieram dois Antônios, espetaculares, mas de permanência alternada precisamente por causa das longas férias a que se davam ao direito.
Mas é do Francisco , filho de escravos , cozinheiro de meus padrinhos, que guardo na lembrança coisas muito engraçadas. Meu padrinho, veterinário, deslocava-se muito à capital, a Luanda, por conta de trabalho. Numa dessas viagens minha madrinha, sozinha em Moçâmedes e às vésperas de uma cirurgia, preocupada com a ausência do marido que talvez pudesse retornar à cidade só no dia seguinte , resolveu chamar o fiel e amigo cozinheiro para lhe passar suas últimas vontades caso lhe acontecesse o pior durante a operação.
-“Francisco, vem cá. Olha, como sabes vou ser operada amanhã só te tenho a ti neste momento difícil então, estão aqui algumas coisas para me prepares caso me aconteça alguma coisa: tens aqui minha roupa, minhas meias , um lençol e neste envelope dinheiro para o meu enterro.”
Muito comovida ela estava , claro , afinal estava ali a sua herança ainda em vida.O Francisco ouvia-a atentamente.
-“Bem, cozinheiro, não falta nada, pois não?”
- “Falta sim, minha senhora”
-“O que falta?”
-“Os sapatos .Então a senhora quer ir sem sapatos?”
A cirurgia correu bem, meu padrinho chegou a tempo , e o Francisco devolveu tudo aquilo que tinha religiosamente guardado em seus aposentos.
Mas eram tempos difíceis , por outros motivos. Tempos de terrorismo , inicio dos anos 60 e todos começavam a viver dias de muita apreensão. Apesar da confiança ser total , mas quem tinha empregados vivendo em casa procurava conversar com eles sobre o que estava acontecendo. Minha madrinha chama o cozinheiro e pergunta-lhe se sabia que já aconteciam atos de muita violência naquele inicio de guerra colonial em Angola ,e que se matavam brancos com “catanas”.
-“Olha Francisco, nós até temos uma catan guardada num quarto no quintal não temos? “
-Temos sim, minha senhora, não nem se preocupe com isso pois ela está velha e enferrujada. Sem possibilidade de uso.Não serve para nada”
E assim meus padrinho ficaram descansados pois, com aquela catana guardada no quintal não iriam ter problemas.
Garantiu-lhes o fiel e amigo Francisco.
Lana