DERRUBADAS NO MATO GROSSO: CABEÇA DE BOI NA BRASA
DERRUBADAS NO MATO GROSSO: CABEÇA DE BOI NA BRASA
Após um breve período fora, em 1985 voltei ao Mato Grosso, desta vez como Gerente de Contrato das obras da Usina Hidrelétrica de Salto do Apiacás. A localização desse projeto, hoje em operação, é bem abaixo do triângulo ao norte do mapa de Mato Grosso. Para acesso utilizávamos uma vicinal da estrada Alta Floresta a Apiacás. Para aviões, no início havia uma parte da estrada mais larga que possibilitava os pousos e decolagens de aeronaves de pequeno porte distante seis quilômetros do canteiro de obras, depois substituída por uma pista de pouso que construímos ao lado, com áreas de aproximação e mais condizente com operação de aviões. Era uma obra interessante, grande e com variedade imensa de atividades. Iniciados os serviços, um empreiteiro de derrubada se instalou nas proximidades do campo de pouso. Armou uma grande barraca e começou o corte das árvores em um terreno ao lado. Sempre que eu passava por ali, o empreiteiro me cumprimentava. Ouviu-se na obra que um funcionário do empreiteiro de derrubada morrera de malária e fora enterrado como indigente em Alta Floresta devido não ter documentos. Ouviram-se outras histórias sobre peões que haviam sumido, muitos achavam que foram carregados por uma onça que rondava o canteiro de obras dele. O pessoal que trabalhava no corte de árvores dormia em redes. Para escapar da onça, diz a lenda que a pessoa que dorme em rede deve se cobrir totalmente da cabeça aos pés e assim permanecer a noite inteira, Contavam alguns que a onça fareja a rede, mas não distingue a cabeça, que é onde ela ataca. Então o animal desiste e vai embora. Um o outro afirmava ter passado por essa experiência. O cozinheiro passara por uma situação terrível em um garimpo. Estava na barraca que usavam de cozinha ao lado da chapa sobre a fogueira de carvão, quando silenciosamente entra uma onça preta, que chamamos de pantera. O animal estava quase a seu lado e, rapidamente, ela conseguiu jogar pedaços de carvão sobre o bicho, que se afastou.
Certo dia, final de tarde, eu voltava de Alta Floresta onde tratei de assuntos da obra, o empreiteiro fez sinal. Parei a camionete e fui convidado a fazer uma refeição com ele e o seu pessoal. A promessa: ”-Doutor, o senhor vai comer uma coisa que nunca viu e é uma delícia!”. Abriu a grande tenda de lona para eu entrar e, realmente, nunca havia visto uma grande cabeça de boi sobre a uma mesa de centro, com olhos arregalados me olhando,exalando fumaça. Ao lado da cabeça, vários pratos e duas ou três panelas com molho e talheres. “A cena me lembrou um verso de “I-Juca Pirama”, poesia de Gonçalves Dias:” Que comece o festim!”“. Sentados em bancos bem baixinhos em volta da mesa, o pessoal de confiança do chefe e eu, sempre orientado pelo anfitrião, começamos a carnear a cabeça, que estava enterrada na brasa desde madrugada. A técnica é a seguinte: depois de tirar o couro da sua parte, o camarada corta uma lasca de carne, embebe a carne em um molho e come com pão ,mandioca ou farofa. Conforme me explicou empreiteiro: ‘-O buraco, com cerca de 70 centímetros de profundidade e 60 de diâmetro para cada cabeça, é pré-aquecido com lenha durante cerca de oito horas. A brasa então é retirada e a cabeça é colocada no buraco, e recoberta com brasa. “Tampa-se com terra e deixa-se o dia todo assando.”
Aquele bando de homens se esbanjou de comer, uma cabeça de boi serve vinte pessoas. Para acompanhar,uma cachaça. Reconheço que a carne fica deliciosa. Mas, aos poucos, só fica a caveira do animal, o que não é muito agradável. Fiz algumas perguntas sobre a atividade de desmatamento com moto serras, quem era o dono do terreno, etc. Depois de me sentir confiante, mencionei sobre a funcionário morto e o cidadão informou que procurara os parente do rapaz e não localizara. Uma pena, era trabalhador. Então perguntei como ele tinha coragem de se instalar no meio de uma mata com um bando de pessoas que mal conhecia.”-Ah, mas eu me cuido.” Embora sabedor de como ele se cuidava, fiz cara de idiota e perguntei quais eram seus cuidados. “-O senhor está vendo aquele velhinho na porta da barraca?” Fiz que sim, e ele completou:” –Aquilo é ruim. Trabalha comigo há vinte anos, tenho mais confiança nele do que em mim mesmo. Nunca me deu trabalho.” Olhei melhor para a figura aparentando uns sessenta anos, sem expressão alguma, coberta da cabeça aos pés por uma espécie de poncho, impassível. “-É verdade?”
“-Se é,doutor, se é. Quando um camarada me dá muito trabalho, eu só olho para ele e mexo com a cabeça. Ele sinaliza para o cabra acompanhá-lo e o sujeito muitas vezes vai chorando. Em caso de recusa, ele faz um serviço na frente dos outros mesmo. Certa feita mandei dar um jeito em dois cablocos que haviam desrespeitado a filha de um fazendeiro. Ele me falou que após se afastarem para um local ermo perguntou qual deles queria morrer primeiro.Os dois danaram a chorar e o velhinho disse que não gostava de ver homem chorar e executou os dois do seu jeito.”
Satisfeito com a comida e com minha curiosidade sobre coisas do Mato Grosso que não acreditava ser verdade e, infelizmente era, voltei. Ao sair, o empreiteiro gentilmente me ofereceu: “-Qualquer problema que o senhor tiver me avise. Estou aqui para ajudar o amigo.”
Agradeci, Cabeça de boi, nunca mais.
Paulo Miorim 21/09/2020