A mulher grávida
A tarde estava um tédio com um T bem grande na loja. O marido da dona da loja, com quem fico à tarde, estava sentado na calçada, fugindo do calor. Tudo estava arrumado. Não tinha uma cliente sequer.
Eu tinha um plano perfeito na cabeça: Eu iria tomar água na cozinha atrás da loja, quando voltasse, bateria "sem querer" meu quadril na passagem estreita do balcão para derrubar os lubrificantes do sex shop para ser obrigada a arrumar tudo depois. Seria perfeito!
Mas quando ia tomar água, uma grávida entrou. Geralmente, quando atendo grávidas lá é só para comprarem calcinhas bem confortáveis ou sutiã de amamentação. Mas essa entrou e foi direto nas calcinhas mais sensuais que tinha. Dei boa tarde, quando ela virou o rosto pra me responder, olhei os olhos dela e estavam vermelhos e úmidos. Poderia ser alguma irritação, sua voz parecia normal, ainda assim... Quando tudo isso da pandemia começou, eu aprendi a prestar muita atenção nos olhos das pessoas. Os olhos dizem o que a boca nega.
"Dessa aqui tem G?" Eu respondi que não, que os modelos de fio só vinham tamanho médio, mas que dava pra regular do lado, então nem precisava ser grande se era só ajustar ao tamanho do quadril. Eu sempre falo isso, mas quando olhei de volta pra ela, os olhos pareciam dizer "você é cega ou o quê?" Então lembrei da barriga. Fiquei constrangida e já ia pedir desculpas, mas ela perguntou: "essa loja aqui é a mesma da outra que tem lá pra frente?" Respondi que sim, que era a mesma dona. "Eu vim de lá agora. A mulher de lá arrasou comigo. Também, quem mandou eu puxar assunto com ela... Ela disse que nada do que eu comprar agora vai ficar bom por causa dessa barriga. Ela arrasou comigo... É muito escroto isso..."
Ao falar isso, a voz dela foi ficando chorosa, como de uma criança que acabou de ser humilhada. Ela começou a se apequenar diante de mim e quando pisquei, a barriga não parecia mais tão grande e a grávida me parecia uma mulher antes de tudo. Antes de ser uma grávida, ela era uma mulher. A voz dela me chamava e eu senti a mesma coisa que senti quando minha irmã chegou da escola dizendo que foi chamada de "macaca", um impulso de tomar a mão dela e falar olhando nos olhos que ela é linda, que não deve acreditar em tudo que os outros falam, que tem muita gente filha da puta nesse mundo que não está nem aí para o sentimento alheio, que...
Ah, eu pensei em tanta coisa.. talvez esse seja meu problema. Eu penso demais e acabo não agindo. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, a mulher retomou o controle da situação de uma forma invejável. A voz firme perguntou "tem dessas canetas sozinhas ou só vem com a calcinha?" Eu fiquei um pouco atordoada com isso e falei que ia ver no balcão, me abaixei por uns cinco segundos e quando ia dizer que não tinha mais, ela já tinha se virado e estava calmamente saindo da loja. Eu fiquei lá, olhando para os lubrificantes com um nó na garganta, entalada com as palavras que demorei demais pra falar. E quando estou entalada, eu escrevo. É isso.