“NEM TUDO QUE RELUZ...” (ABRA O OLHO, PROFESSOR/A)!
A opressão é domesticadora. Um obstáculo gravíssimo para a conquista da libertação é que a realidade opressiva absorve os que nela estão e, assim, age para submergir a consciência dos seres humanos (Paulo Freire).
Claudio Chaves
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EM SETEMBRO de 1987, na capital de Goiás (Goiânia), o proprietário de um ferro velho ficou tão encantado com a maravilha da luz verde-azulada que irradiava do interior de uma determinada peça que havia comprado de dois catadores de lixo (como se chamava, à época, os recicladores) que decidiu guardar o achado em casa.
UM IRMÃO do microempresário, também maravilhado com o hipotético tesouro, levou uma pequena porção do pó brilhante para sua casa. Durante uma refeição, sua filha de sete anos de idade, imperceptivelmente, ingeriu junto com a comida fragmentos da substância misteriosa. Leide das Neves Ferreira, a sobrinha do dono do ferro velho, morreria um mês depois por intoxicação radioativa.
DUAS semanas após perceber que todas as pessoas que haviam entrado em contato com o produto passara mal, a esposa do microempresário associa uma coisa a outra, e resolve levar a pequena cápsula (19g) do pó brilhante ao Centro de Vigilância Sanitária. Os técnicos logo identificaram: tratava-se de cloreto de césio ou césio-137, um componente químico altamente radioativo, usado, entre outras finalidades, para o funcionamento de máquinas de exames radiológicos, como as que são empregadas no tratamento de câncer, por exemplo. Ela foi a segunda vítima fatal.
O DESASTRE daquele achado que, a princípio, encheu, literalmente, os olhos de quem o viu, foi (ou, melhor, está sendo) tão potencialmente nocivo que, além ter sido classificado como um dos maiores acidentes radiológicos da história, passou a ser considerado pela Agência Internacional de Energia Atômica como referência mundial quando se trata de prevenção desse tipo de tragédia.
OFICIALMENTE, quatro pessoas morreram em consequência da exposição à radiação do césio-137. A Associação das Vítimas do Césio-137, no entanto, afirma que esse número chega a 80.
ATUALMENTE, mais de três décadas depois, quase mil pessoas continuam tendo sua saúde monitorada em razão da contaminação ocorrida, direta ou indiretamente.
ESSE longo prólogo é [mais] uma tentativa de chamar a atenção dos professores da rede pública de ensino do Brasil (e especialmente do Estado do Amapá) para o abismo irretroagível que podemos está, a passos nada vagarosos, caminhando ao ignorarmos [e muitos até a glamourizar] os efeitos nefastos do tal ensino remoto [mais justo seria “terremoto”] da forma como se está efetivando por essas paragens.
PARA evitar (ou pelo menos diminuir) enfados e repetições, superficialmente destacarei apenas quatro pontos:
1. O micro dentro o macro – Não sejamos ingênuos! A pandemia não é um fim, mas um meio. Ela não é a causa da implantação do ensino [ter]remoto, mas apenas o pretexto ideal para acelerá-la. A razão especial de sua existência também não é a melhoria da qualidade da educação da plebe, das condições de trabalho dos docentes ou, menos ainda, a redução das desigualdades sociais – que, pelo contrário, serão, exponencialmente, mais agravadas. Grosso modo, se trata de uma engenhosidade que vem sendo construída há décadas, e faz parte de um projeto global (macro) do metamorfoseamento do capitalismo como estratégia de sobrevivência e fortalecimento ante às ameaças e inevitáveis crises que o sistema sempre terá que enfrentar. Em síntese, reduzir despesas e aumentar os lucros.
2. Maximização de tempo e redução de espaços – pense na [genial] ideia de ensinar milhões de alunos sem gastar com construção e reforma de prédios, materiais de limpeza, transporte escolar..., e ainda poder atendê-los a qualquer hora e de qualquer parte do Planeta – e, quiçá, até fora dele, por que não?! E se é possível apenas um professor atender centenas de alunos simultaneamente, por que contratar um para cada turma de 30 ou 40? Não seria este admirável novo normal a verdadeira realização do sonho de Midas?!
3. Pra que concurso e formação continuada? Se a obrigação de prover os recursos tecnológicos (além dos espaços físicos), bem como a habilitação para utilizá-los passa a ser do professor (como está acontecendo por ‘a cá’), que sentido fará continuar mantendo a superestrutura para garantir concurso, estabilidade e formação continuada? Não seria mais vantajosa [“para ambos”] uma relação jurídica-jurídica – o Estado, uma empresa, e o professor um MEI?! Ó, que maravilha! De empregado, subalterno, o professor tornar-se-á, num passe de mágica, um empresário ou, na pior das hipóteses, um próspero e altivo empreendedor, um liberal – ao invés de “gerar despesas” com encargos trabalhistas, passará a contribuir com seus impostos para o engrandecimento da Pátria Amarga!
4. Eliminação das fronteiras entre o institucional e o pessoal – Sabe aquele “inciso daquele livrinho de capa verde-amarela” que diz que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém podendo nela adentrar sem consentimento do morador...”? “Isso não te pertence mais!” Mas pense no lado “bom”! Ao invés de ir ao trabalho, agora, o trabalho virá a você. Não precisará mais se separar dos seus entes queridos enquanto trabalha – poderás fazer tudo ao mesmo tempo e no mesmo espaço: trabalhar, dar atenção aos filhos, atender à campainha, recolher a correspondência... tudo com a garantia de que os cachorros pedirão permissão pra se manifestar e que o vizinho não irá comemorar o aniversário de ninguém da família ou prosseguir com a construção/reforma de sua casa sem antes combinar com você os horários; tudo “tranquilo e favorável”.
POR QUESTÃO de tempo e propósito, com já frisei, abster-me-ei de adentrar em pormenores (não tão menores), como: a insegurança jurídica dessas novas relações de trabalho, as novas patologias e as dificuldades que os trabalhadores terão de comprovar sua associação com o labor regular, além da sensação permanente (para efeito de monitoramento) que você terá de que ao habilitar seu smartphone, acabou de configurar, na verdade, uma espécie de tonozeleira eletrônica.
PARA os que permanecem mundiados (e, por isso, conformados) com o admirável mundo novo normal das whatsaulas, deixo, a título de [+ uma] provocação, o diálogo de Ricardo Antunes e uma funcionária do banco, relatado por Christian Cruz, em entrevista concedida pelo professor e publicada em 2009.
– Por que o Sr. não paga suas contas pela internet?
– Porque eu não lido bem com tecnologia;
DIAS depois, a moça fez novamente a proposta. E ele, novamente, disfarçou: “Porque eu não confio na internet”.
SOMENTE na terceira tentativa da bem intencionada funcionária, o sociólogo foi direto: “Porque eu não quero que você perca seu emprego”.
ESPERO ter contribuído!
Fontes:
As 47 melhores frase de Paulo Freire, o Patrono da Educação Brasileira. Disponível em: https://www.pensador.com/melhores_frases_paulo_freire_patrono_educacao_brasileira/ Acessado em: set/2020.
BRASIL, Constituição da República Federativa do. Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. Artigo 5º, Inciso XI. Brasília. Senado Federal, 2016.
CRUZ, Christian Carvalho. Entrevista/Ricardo Antunes. O Estado de São Paulo. Disponível em: https://contrafcut.com.br/noticias/ricardo-antunes-admiravel-mundo-novo-0d81/ Publicado em: out/2009. Acessado em: set/2020.
NADAI, Mariana. O que foi o acidente com o Césio-137 em Goiânia (GO)? Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-acidente-com-o-cesio-137/ Publicado em: ago/2011. Acessado em: set/2020.