Inglesa gostosa
As ruas frias, as nuvens baixas, árvores, nuas, a neve nos cantos: dura, pedra, gelo... O caminho do quarto de pensão. Aquele senhor vai passar mais uma noite na companhia do tic-tac do despertador e a esperança da carta de amanhã, a carta diferente, nenhuma igual aos milhares de cartas e cartões postais recebidos de todo lugar do mundo, essa vai trazer certa incerta notícia, mas que espera, espera... continua esperando.
Talvez uma carta de Sylvia “Emanuelle” Kristel, dizendo que o viu um dia em Clichy, ao acender das luzes, quase em frente ao Moulin Rouge, nunca mais o esqueceu, descobriu seu nome, endereço e finalmente pode confessar a paixão despertada nela, virá buscá-lo, melhor já fazer as malas, vão viver em Tahiti, ele não vai precisar mais de ir para o trabalho... nunca mais. Ou uma carta de editor, alguém que, lendo seus escritos por acaso, não pode mais esperar um minuto para obter sua autorização e publicar tudo que tiver escrito, fazer filmes etc etc... vai ganhar dinheiro até com o que ainda estiver em fermentação, exclusividade absoluta.
Uma carta, uma certa notícia, aquela que ele espera daquele (a), a carta-resumo, a pessoa-síntese, a notícia que mudará os rumos da História e resolverá todas as contradições sociais... amanhã pela manhã, quando despertar, antes do café, de escovar os dentes, amanhã ela, a carta, estará na caixa de correio, amanhã, amanhã...
Amanhã aquele senhor terá de se levantar cedo, talvez uma das últimas vezes. No quarto da pensão, aquela Pensão Centria, a cinquenta metros do cemitério situado entre as embaixadas americana e soviética, há dias, não passa sombra de mulher. Ler até tarde, fazer ginástica, escrevinhar alguma coisa, tudo ajuda a passar o tempo e controlar os hormônios, mas nada supera os encantos da inglesa infiltrada na pensão, com pleno conhecimento da “concierge”: essa o enfeitiça quase de graça.
Encostar-lhe o dedo com doçura e expertise naquele certo lugar é o bastante, ela se acende, olha a voz sensual chegando, as notícias “breaking news”, a hora de Greenwich, o mundo vindo em ondas de rádio, aquele senhor debaixo dos edredons, o Irã, o Afeganistão, o Marechal Tito, Khruschev, olha a inglesa de voz macia, dá o serviço com profissionalismo, sedutora, conta segredos baixinho, sintonizada, ligada, sapiente, minha bebezinha, do you love me? my BBC, inglesa gostosa que consola aquele senhor triste que há de receber uma carta, a Redentora, amanhã de manhã, um pouco antes de sair para o sacrifício diário. Aí, nunca mais terá de suar pelo pão de cada dia, adeus Gênesis, 3.19.
Das duas cartas redentoras possíveis, uma já está escolhida: entre o editor e Sylvia Kristel, o melhor dos mundos é morrer sufocado pelo furacão “Emanuelle”. A onipresente inglesa gostosa, companheira das madrugadas, não exige exclusividade, não o abandonará jamais por essa decisão.