Gameleira e Passariscos
... porque me mata quando irrompe assim, me estoca o peito aos poucos, como uma dor...
E surge assim um vazio por dentro, por onde o vento passa, peito estufado, potente, imponente, o dono...
Como uma dor, sei lá. Em tardes assim, de cores assim, me esmaga a existência, me lança ao rosto tudo quanto não fiz, todas as terras em que não pisei, todos os livros que não escrevi...
Esmagador, como uma dor. E na silhueta das nuvens estão escritos nomes significando muito mais que os próprios nomes: Bagdá e Cuzco e todas as terras lendárias.
E por entre o rosa da tarde, saindo das nuvens, a cara galhofeira de Renoir me dizendo por que não pinto, é tão fácil, olha, e num instante o céu está de saias longas, riscos coloridos simetricamente desarranjados, descuidadamente ordenados...
E me atiro com fúria ao cavalete, mastigo os freios como um cavalo babento, espero até que nasça o indispensável cavanhaque, assumo aquele ar de imponência...
Mas não dá. Tudo que me vem é inferior ao que me vai. Pego com Deus, com pássaros cantores, com as donzelinhas vestidas de anjo do mês de maio da Virgem Maria e do Padre Guerino, mas sempre o que me vem é inferior ao que me vai...
Saio de mim, uma tentativa ainda de novos amigos, de outros amores, sempre na esperança de que a ave do paraíso apareça na próxima esquina, no próximo boteco. E sempre as aves do paraíso se desfazem como gelo ao sol, etéreas como canto de grilos, as aves do paraíso, pássaros ariscos, meus passariscos...
Criar, criar... Meu Deus, onde andará a criação?
Último ato (algum dia)
A gameleira é rija, firme e consistente e dizem que até enfrenta o capeta, mas nem treme nem alui o pé do lugar. Sabe onde nasce e onde morrerá. Não dá sombra nem poleiro a passariscos.
Um dia resolvi que era melhor parar de andar assim à louca, que só um bode narigudo...Aí plantei meu primeiro flamboyant ao lado de uma gameleira.
(Brasília/1975)
Publicado: jornal Município de Pitangui 06/07/1975 – La Chaleur)