A verdadeira

Odete, já no seu cinquentenário, funcionária a mais de trinta anos, era amada e odiada por todos na repartição. Solteira convicta, impecavelmente vestida, dona de uma nuvem rosa perfumada, sempre que passava pelos corredores, sentia-se no ar sua presença.

Sempre se gabou de ser verdadeira, que como dizia, ser “escrava” da verdade, proferia tudo que pensava, como um trator passando sobre tudo e todos.

Nos cantos, já se falavam sobre assuntos, as escondidas de Dona Odete, para que coisas corriqueiras não tomassem vulto significativo.

Um belo dia, chega Andréa, jovem atendente da repartição, dizendo que iria se casar com Rodolfo, um funcionário de uma empresa que dependia da repartição para desempenhar suas funções. Toda feliz, ela exibia o anel de noivado em meados de fevereiro, e já adiantando que o “casório” seria em setembro. Em meio a lágrimas, risos, e saltinhos das amigas, o burburinho começou a subir, e não tardou chegar aos ouvidos dEla.

Dona Odete levantou-se, foi até a pequena confraternização e sem pedir licença, pegou a mão de Andréa, e a conduziu até o banheiro feminino.

Todos ficaram perplexos com a atitude, e já desconfiavam qual seria o teor da conversa. Dona Odete, olhou Andréa nos olhos e começou seu recital. Há anos ela explicava os motivos da escolha por não se casar, não ter filhos, etc. No meio da sua declamação, Andréa a interrompeu e sem pensar duas vezes, quis saber o que estavam fazendo as duas no banheiro de forma reservada.

Odete, por sua vez, repleta de frases de efeito, citou quatro ou cinco delas e soltou a bomba, Rodolfo tinha um caso com Shirley da finanças. Certa de que Andréa iria se desintegrar diante de seus olhos, ficou aturdida, quando a mesma não se assustando, disse-lhe que já sabia, e que o mesmo havia lhe contado, e completando, indagou a distinta Senhorita que tal coisa não lhe dizia respeito. Dona Odete, pela primeira vez na vida, sentiu-se insegura, tentou mais uma vez falar, mas foi impedida, quando sentiu que Andréa colocou levemente a mão esquerda sobre sua boca, e completou dizendo que aquela conversa havia chegado ao fim. Extremamente educada, se recompôs e saiu do banheiro, a procura dos sorrisos que havia deixado em sua sala.

Odete saiu desconcertada, cabeça baixa, coisa difícil de se acreditar, mergulhada em seus pensamentos, tentando entender como uma pessoa poderia se colocar numa situação desta, consciente dos fatos.

Naquele dia, Odete percebeu que seu comportamento era inadequado, tudo que já havia feito, não era motivado pela verdade, e sim por um despeito, por um sentimento mesquinho, com a intenção de liquidar pequenas alegrias.

Olhou-se no espelho, e não gostou do que viu, percebeu tarde, pensou ela, que havia magoado diversas pessoas, exterminando pequenas mentiras como fossem ervas daninhas. Lembrou, as inúmeras vezes que foi elogiada, se deu conta, muitas delas, as pessoas estavam sendo educadas, e como aqueles pequenos elogios, faziam seu dia melhor.

Sei que ela terá enormes dificuldades para mudar um comportamento, como um drogado, nos viciamos também a atitudes, e isso leva tempo e concentração para uma cura.

Adoraria dizer que a semana que se passou, houve mudanças em seu comportamento, mas me lembrei da fábula entre o sapo e o escorpião, onde nossa natureza interna nos rege, como fossemos simples marionetes.

RRSabioni
Enviado por RRSabioni em 17/09/2020
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