Uma morte no Covidário

Primeiramente quero dizer que Covidário é o nome do local onde ficavam os pacientes com COVID 19. Sim, eu sei que é horrível. Eu vou utilizar o mesmo nome porque é assim que todos chamam e porque eu acho que isso diz muito sobre a Pandemia.
Só para contextualizar eu não trabalho em hospitais, trabalho em uma Policlínica com idosos, mas devido a Pandemia fui convocada para fazer um plantão por semana no Covidário de um hospital local. Esse é um relato de uma das muitas experiências nesse trabalho. No meu relato não tem nada de técnico, só um desmanche de emoções.
Era uma quarta feira de muito calor. Naquele dia eu já estava muito cansada e impaciente. Era de manhã. Estávamos eu e uma psicóloga com a qual me dava muito bem. Lá pela metade da manhã eles chegaram: Era uma senhora e um rapaz. Uma esposa e um filho de um determinado paciente de aproximadamente 60 anos. Ele estava se tratando de um câncer na próstata quando pegou o COVID 19 e teve que ser internado. Vinha evoluindo com alguma melhora, mas nos últimos dias a família não tinha recebido o Boletim Médico e estava angustiada em busca de notícias.
Para mim era uma novidade porque as famílias vinham recebendo os Boletins diariamente, mas por problemas na equipe estavam dias sem receber. Conversamos com eles. Tentei contato com a pessoa responsável pelo Boletim que me orientou que eles fossem a chefia de equipe tentar falar com o médico do plantão. Seria difícil que o médico pudesse atendê-los, mas eles poderiam tentar.
Eles sabiam onde deveriam ir. Já tinha estado nessa situação. Perguntaram se poderiam ir pela entrada onde nos encontrávamos próximos. Eu inocentemente liberei a entrada deles junto aos vigilantes. Como todo familiar nessa situação eles queriam ver o paciente e foi isso que fizeram. Eu saí da sala brevemente. Quando retornei soube da confusão: Eles foram entrando e invadiram o Covidário (local onde eles não poderiam entrar). Os vigilantes vieram falar de todo o transtorno e que registrariam o ocorrido. Eu fiquei chateada pensando que eu tinha sido inocente e que a família fez o que todos nós faríamos.
Daqui a pouco vêm o vigilante novamente. Com o olhar expressivo ele diz que o filho está no corredor desesperado porque o pai faleceu. Um palavrão quase escapuliu da minha boca. Eu não conseguia acreditar. Olhei rapidamente o prontuário. Foram três paradas respiratórias seguidas. A equipe tentou o que pode. Não foi possível. O Covid venceu mais uma vez. Eu e a psicóloga tranquilizamos o vigilante:
- Estamos indo lá!
Colocamos nosso jaleco como se tivéssemos nos preparando para uma batalha e pegamos o álcool em gel: nossa arma. Subimos as escadas. Eu pensava no que nos esperava naquele corredor.
Chegando lá a viúva estava sentada se desfazendo em lágrimas e inconformação. O filho andava de um lado para o outro procurando o chão. Havia também um sobrinho com os olhos marejados de dor. No instante que olhei para eles meu coração já se encolheu compadecido. Ela quis contar o que aconteceu. Eles sabiam que não podiam entrar no Covidário, sabiam que estavam fazendo algo de errado, mas mesmo assim fizeram. Ela contou que quando entraram ela viu as pernas dele. Estavam tremendo pois estavam tentando fazer a ressuscitação.
Eles entraram bem na hora!
Meu coração congelou quando ela falou isso. Ela então continuou contando entre suspiros e muitas lágrimas. Disse que a médica deu um grito quando viu eles entrando e que eles saíram. Depois a médica informou o óbito.
Eu não tenho como descrever pra vocês toda a dor que vi naqueles momentos. A viúva uma senhora de sotaque paraibano e tom simpático estava totalmente entregue ao momento, ao desamparo. Ao lado dela ouvi, em diversos momentos, ela pedindo pra Deus ajudá-la, para lhe dar forças. Eu me sentei ao lado dela e não conseguia deixá-la. A psicóloga interviu e com muita segurança tentou confortá-la. Ela ouvia e respondia, mas não sei se entendia. Segurando as coisas dele ela falava: "Meu amor, você me deixou"!
Não tínhamos muito o que fazer naquele momento além de acolher, acolher e acolher. Foi o que fizemos.
Em certo momento fui falar com o filho que se revezava entre falar com os familiares e se desesperar. Ele era um homem jovem, alto. Os olhos claros estavam vermelhos de chorar e encharcados de emoção. Ele também nos contou sobre o que aconteceu e sobre toda a saga tratando um câncer para vir um vírus e acabar com tudo. Ele parecia não acreditar no que estava acontecendo. Ele se esforçava para dar conta do momento, mas estava esfacelado.
A médica veio e respeitosamente deu o documento para a família. Tinha que ser providenciada a documentação. Eu não conseguia sair de perto da viúva e a psicóloga espontaneamente se dispôs a acompanhar o filho e o sobrinho aos setores necessário.
Ficamos só eu e ela. Ela tentou ligar o celular dele com a pouca bateria restante. Foi o suficiente para ela ver a foto de tela do celular: os dois juntos. Foi demais para ela. Era difícil até para respirar. Eu passava a mão nas suas costas como quem assopra um machucado em vão. Embora tentássemos confortá-la ela falava com muito pesar sobre a última conversa com seu marido. Nesse último encontro ele avisou: “Se você me deixar aqui será a última vez que vai me ver”. Ela disse que não acreditava que aquelas palavras seriam verdade.
Eu e a psicóloga ficamos muito tempo com a família. Horas dolorosas onde estávamos inteiras ali para eles. Momentos em que presenciamos, mais uma vez, a tragédia do luto, a tragédia da Pandemia, a tragédia da condição humana. Conversamos, acompanhamos, acolhemos, silenciamos e confortamos. Nada foi suficiente. Não tem como ser. O choro da viúva as vezes era tão alto, cortava o coração. Tinham sido 20 anos ao lado daquele homem. O filho que estava lá não era dela, mas havia imenso respeito de ambos.
Já passava a hora do almoço e eu precisava ir. A psicóloga disse que nem fome sentia frente a tanto sofrimento. Eu me despedi com todo o sentimento que conseguia emprestar naquele momento. Eles agradeceram com muita sinceridade. O sobrinho me disse que ele estava entrando numa fase do tratamento do câncer em que estava se desgastando muito e que isso não combinava com ele. Que talvez tivesse sido melhor assim. Eu concordei pensando nas fases do luto e no quanto era bonitinho o esforço de encontrarem um sentido para a morte.
Eles ficaram com a valente psicóloga esperando o pastor. Eu sai com os passos pesados, tentando assimilar toda a dor do momento vivenciado. Eu também me sentia em luto.
Pensei nos mais de 100 mil brasileiros que morreram por Covid.
Nos mais de 100 mil lutos.
Nos mais de 100 mil corações partidos.
Toda a dor de 100 mil famílias. Todos os enterros rápidos e caixões fechados.
Meus passos eram tão pesados. Eu só queria chegar a algum lugar onde fosse possível fazer algo. Onde tanta dor não fosse necessária.
Em nenhum momento eu chorei. Não tinha lágrimas. Me sentia petrificada. Embora sentida com tudo sabia que devia estar ali, sabia da importância dos profissionais de saúde, mas lamentava que fosse essa a realidade para tantos. Não consigo aceitar que tenham que ser tantos. A morte é o destino de todos, mas a maneira como chegamos a ela diz muito sobre quem somos enquanto pessoas, enquanto família e enquanto pátria.
Eu percebia a tragédia da Pandemia em diversos momentos e todas as vezes que estava lá no Hospital, mas haviam dias impossíveis. Aquele era um dia desses. Nesses dias, mesmo com toda minha esperança, eu percebia que muito de nós está sendo arrancado. Não vai ficar tudo bem. É muito luto. É muita dor. Falta um pedaço. Falta mais de 100 mil pedaços.
Percebemos que um ser minúsculo pode mudar tudo. Somos muito vulneráveis e somos também muita imensidão. Seja na esperança ou seja dor. Hoje infelizmente na dor de mais de 100 mil que importavam e muito.
É verdade que nunca cheguei a ver esse senhor que faleceu.
É verdade que não consegui retratar nem um terço da tristeza e da beleza do momento que narrei.
É verdade que é só mais uma morte no Covidário, mas agradeço por poder contar pra vocês. Eu precisava.


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