O CAVALO VADIO
Esse era vadio... Sabia enganar o dono, fugir do trabalho escravo, ficar
vagando à toa pelos recantos do bairro da Renascença. Uma vez eu o vi.
Vinha do batente, cansado, com uma fome canina. Atalhara o trajeto costu-
meiro, passando por detrás do campo de futebol do "Renascença", objeti-
vando chegar mais depressa em casa.
Ele estava lá em cima, no terreno limpo, antes um mato feio. Ruas foram
abertas, trator rasgou o morro que havia, modificando a paisagem. Agora
só terra vermelha e ele no meio dela, fazendo não sei o quê. De capim na-
da mais havia, só terra vermelha, água nem sombra.
Observei-o de longe. Seu ar de brejeiro, porte manhoso. Uma molecada vinha descendo, jogaram-lhe torrões, uma fuzilaria de calhaus. Ele então relinchou, irônico, abanou a cauda, trotou num garbo avacalhado para a
extremidade do terreno. A meninada desistiu. Ficara longe do alcance das pedras.
O malandro girou a cabeça, olhou os garotos. E então, com infinito desdém, ajoelhou-se, virou de barriga pra cima, rolou até mais não poder na poeira vermelha. Depois, levantou-se, sacudiu a imundície,
saiu devagar e matreiro.
Continuei meu caminho, o pensamento naquele animal esquisito. Pare-
cia até raciocinar. Incrível !... Depois do banho, a janta. Desta para a es-
la, que não sou como o cavalo vadio. Tarde da noite, quando retornava à
casa, topei de novo com o matungo, outra vez pastando quieto a gramínea da rua.
Parei perto dele, admirando-o. Ergueu o pescoço, fixou-me seus grandes olhos castanhos, tremendamente vivos, quase humanos, relin-
chou suave, sacudiu a cabeça e afastou-se devagar, calmo como nunca!
Só faltou desejar-me uma boa noite !...
-o-o-o-o-o-
B.Hte., 16/09/20