OS NOSSOS CÃES SELVAGENS.

( Moçâmedes/ Baía dos Tigres/Angola)

Tive uma infância feliz e muitos cães à minha volta como não poderia deixar de ser.Desde muito pequenos eu e meus irmãos vivemos entre eles.

O nosso 1º, o querido Lumbumba, um “vira- latas”, rafeiro amoroso que chegou a nossa casa no colo do meu pai( lembro como se fosse hoje) foi o nosso companheiro fiel até à adolescência.Acredito ter sido algum presente de um cliente pobre pois, era assim que meu pai , advogado, recebia o pagamento por trabalhos que fazia.Davam-lhe presentes lindos, sem qualquer sombra de dúvida.Ao chegar a casa e ao pousá-lo no chão da varanda imediatamente o Lumbumba escondeu-se atrás de uma vaso de flores.Tenho esta imagem gravada na memória tal como a do último dia que o vimos com vida, também em nossa casa, muitos anos depois.

Algum tempo depois tivemos o Bobi, lindo, grande , de pelo grosso cor castanho-caramelo, que chegou a nossa casa acompanhando um amigo nosso de infância e nunca mais quis ir embora. Dócil e igualmente amoroso ao contrário do que se dizia sobre o temperamento da sua raça, Bobi era um cão da Baía dos Tigres , região de cães selvagens.Por este motivo questionava-se se seria uma raça boa para conviver com crianças pequenas mas a verdade é que ele foi o nosso fiel companheiro ,e tal como o Lumbumba ,o grande amigo daqueles tempos de infância.

A Baía dos Tigres era uma península isolada no Distrito de Moçâmedes, que depois se transformou em ilha nos idos anos 50 do século passado ,sem nada produzir nem plantar nas suas areias secas. Não havia água em nenhum lugar.Uma história ligava estes cães de raça " Cão Tigre" à minha cidade, Moçâmedes e a este local, outrora um dos maiores centros de pesca de Angola , depois abandonada vila fantasma

A pequena vila foi fundada por pescadores do Algarve, por volta de 1860, mas séculos antes já tinha entrado nos mapas de portugueses e ingleses pela invulgar quantidade e qualidade de peixe, que lhe valeu a alcunha de "Great Fish Bay".

Sabe-se que no inicio do século XX teria acontecido um surto de raiva em Mocâmedes, e que o governador da época teria dado ordem para se executar todos os cães da cidade.Muitos donos rebelaram-se contra aquela situação e não querendo perder seus animais de estimação, resolveram metê-los num navio na calada da noite e levá-los para um local longínquo onde não pudessem ser encontrados. Assim, rumaram até à Baía dos Tigres que consideraram ser o melhor lugar para deixá-los. Ali já existia uma raça selvagem de cães deixados pelos Holandeses, os bóers, quando da ocupação da África do Sul e com a chegada dos cães da minha cidade resultou o cruzamento que levou à raça “ Tigres”. Imperava a lei da selva onde só os mais fortes sobreviviam ; tornaram-se uma raça diferente . Eram ferozes, naturalmente selvagens .Adaptaram-se ao meio, sobreviviam. Excelentes nadadores pois criaram o hábito de nadar para encontrar alimento no mar e embora não bebessem água salgada era na crista das ondas do mar que encontravam gotículas adocicadas para matarem a sede. De menor densidade, as goticulas de água doce ou seja, o orvalho da noite( o nosso cacimbo) depositadas em noites sem vento na crista das ondas, permaneciam por algum tempo sem se misturar com a água do mar.Era portanto, logo pela manhã bem cedo que os cães se jogavam ao mar para matarem a sede.Eram um reloginho.

Acredito que ,em noites de vento esse orvalho não se depositasse e eles quebrassem esse ritual. esta raça sobreviveu e adaptou-se às condições agrestes daquele canto no fim do mundo.

“Vivem em matilhas, completamente isolados.Alimentam-se de peixes e focas e nem precisam de água para viver”- ouvia eu meu pai dizer desde muito pequena sobre aqueles cães.Mas tudo não passava de uma cisma, acredito eu . Viviam nas nossas casa como qualquer outra raça, e não eram poucos, pela cidade.Realmente cães grandes ( impunham um certo respeito), mas não faziam mal a ninguém.

Devo ao Bobi uma aventura da minha pré- adolescência; a minha guarda até altas horas de uma noite após ter chegado a casa depois de uma festa de aniversário de uma amiga. Meus pais tinham saído , meus irmãos já dormiam, e uma familiar que estava em casa com responsabilidade de me abrir a porta adormeceu e eu fiquei do lado de fora.Sentei-me no chão da varanda sem saber o que fazer e já quase dormindo em cima da pedra, sinto o Bobi me puxar pela roupa e lá fui eu com ele. Levou-me até ao outro carro do meu pai que estava no fundo do quintal guardado na garagem da casa . Entrei,tonta de sono, deitei-me no banco de trás e ele sentou-se do lado de fora, de plantão. Sei que a porta do carro estava fechada mas não me lembro de ter sido eu a fazê-lo. Foi assim que meus pais me encontraram, já alta madrugada, mas só após terem ido àquela hora até casa da minha amiga aniversariante para saberem onde eu estava.Foi uma noite tensa !

Este foi o Bobi o “feroz” cão Tigre que nos acompanhou por tantos, e tão felizes anos da nossa vida.

Lana

Teresa S Carneiro
Enviado por Teresa S Carneiro em 15/09/2020
Reeditado em 17/09/2020
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