A minha angolana.Tempos idos.

Acredito que as nossas vidas sejam reflexo de memórias pois, se assim não fosse seriam, creio eu , apenas uma sequência de instantes, muito pouco para a grandiosidade de existência de vida humana na face da terra.

Com nossas vivências exprimimos os mais genuínos alicerces que nos fazem ser os adultos que somos hoje.

A nós portugueses, nascidos naquelas terras de África, faz-nos bem lembrar momentos felizes que lá tivemos e que, por terem sido tantos, e tão nossos, não são esquecidos por mais que os anos pesem sobre nós.

Fui criada numa casa enorme , com jardim ao redor, árvores de fruta, galinheiro, lavandaria, casa da lenha, forno para fazer pão no quintal, uma enorme gaiola cheia de periquitos cada um mais lindo que o outro , canil sempre com vários cães e, portanto com a necessidade do trabalho de empregados ( criados, como eram chamados na época), para fazer face às necessidades de uma família grande de 4 filhos e sempre com casa cheia de amigos.E era assim que víamos chegar à nossa porta aqueles meninos tão pequenos, disposto ao trabalho doméstico, meninos quase das nossas idades , a pedir emprego . Pequenos mucubais, que cresciam junto conosco, e felizes, creio eu. Por muito diferente fosse a cultura éramos crianças e nos entendíamos. Entre as maiores alegrias deles lembro-me dos jogos de futebol com meus irmãos e amigos no areal do deserto, e das idas ao cinema sempre com a força incentivadora de meu pai que lhes dava dinheiro para a compra dos ingressos. Acontecia religiosamente todos os domingos, mas com a condição de contarem o filme logo que chegassem da matinée. Aqueles meninos tinham uma descrição ímpar, expressões únicas.Meu pai delirava.Ria-se que se acabava!

O Branco, o José e o Manuel, foram os três que mais estiveram junto de nós. Ao Manuel, o criado de mesa, que ficou conosco até ao último dia de Angola lembro-me, sem deixar de me comover, de uma das maiores provas de amizade , fidelidade e amparo nos dias mais difíceis das nossas vidas: ano em que deixamos Angola.Aos seus cuidados tive de lhe confiar minha filha, ainda bebé, numa viagem de Sá-da-Bandeira/Moçâmedes no período final do ano de 1975 tempos próximos à independência de Angola.

No inicio de 75, apesar de já se vislumbrarem problemas sérios daí para a frente e ser sabido sobre a violência contra os “brancos” que já acontecia a Norte, ninguém pensava deixar definitivamente Angola e nem mesmo meus pais , mas decidiram passar uma férias em Portugal até tudo acalmar e a vida pudesse voltar ao normal. Por quê os futuros governantes de Angola agiriam contra nós, também angolanos lá nascidos ? Assim pensávamos.Tal como muitos , meus pais achavam que em principio seria por pouco tempo e perguntaram-me se eu queria que levassem minha filha com eles .Estaria segura em Portugal.Aceitei. Seria muito melhor o afastamento do que sujeitá-la a alguma coisa que pudesse fazer-lhe mal.Era pois preciso pegar minha filha em Sá-da-Bandeira, onde estávamos para levá-la até meus pais, em Moçâmedes onde embarcariam.Mas as viagens por aquelas estradas já não eram seguras tal como em nenhum outro local de Angola.Embora ainda de uma maneira contida, mas as três maiores facções políticas independentistas já se faziam presentes e corria-se o risco de um encontro inesperado a meio da viagem . Meu irmão, que já dirigia na época, poderia pegá-la de carro mas o que poderia ser feito dar uma maior segurança ? Foi então que minha mãe pensou no nosso fiel Manuel. Sabíamos que o Manuel já freqüentava a sede do MPLA em Moçâmedes como militante de partido comunista , mas em nenhum momento algum de nós pensou na possibilidade de não termos ali um” leão “a nos defender, a nós “brancos” ,caso fosse preciso.

E assim foi! Lá foi o Manuel a Sá-da Bandeira, orgulhosíssimo com a função de levar a menina Priscila para Moçâmedes. E ele sabia dessa responsabilidade! Abriu imediatamente os braços para mim ao ver-me aproximar do carro.

Eu entregue-lhe minha filha.

Lana

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Teresa S Carneiro
Enviado por Teresa S Carneiro em 14/09/2020
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