TEMPOS DE MOLEQUE
Como é gratificante ter umas histórias malucas para contar!
TEMPOS DE MOLEQUE
Esse negócio de “raízes” é fogo. Carregamos dentro de nós o lugar que nascemos, as pessoas que conviveram conosco, os fatos que aconteceram e, mesmo que não tenhamos consciência, isso tudo é que nos faz sermos como somos. Sempre me pego lembrando dos amigos de infância e juventude, das estórias escutadas, de uma cidade chamada São Vicente, que era tranquila. Saia do Grupão e bolava aula passeando numa Praça do Correio (Coronel Lopes) bem arborizada sem artigos importados, pegava carona de bonde da linha 01 que retornava na Praça Barão do Rio Branco e me deixava de volta ao Grupão. Levei um tombo e cai quase em baixo do bonde 32 em frente às Lojas Pernambucanas na Praça Barão do Rio Branco e poderia não estar aqui escrevendo. Onde hoje é o México 70 era um matagal e minha turma ia caçar passarinhos, catar goiaba e pitanga no pé. Próximo onde é hoje o Centro de Convenções situa-se o campo do Guamium, hoje Rua Japão Guamium Futebol Clube. Era um campo com pouca grama, junto ao mangue e perto de buracos de caranguejos. Mas tinha duas traves oficiais de futebol, uma cerca de madeira ao redor, caindo aos pedaços. Um lugar mágico para a molecada da qual eu fazia parte. Quase todas as vezes que joguei lá era dia de chuva e céu encoberto. Começava o jogo e minutos depois todos estavam encharcados com os uniformes cheios de lama do mangue, o que não diminuía em nada a vontade de jogar futebol. Outra atividade era caçar siris. A gente pegava restos dos peixes comprados pelos fregueses da Peixaria Yamaúti, que na época ficava no começo de onde é hoje o início da Rua Japão, amarrava junto com uma pedra dentro de um puçá ligado a uma corda. Jogava na maré e aguardava um tempo e começava a vistoriar os puçás. Catava os siris com a mão com muita prática e colocava os maiores em um saco, soltava os pequenos. A turma era composta de uns dez garotos, idades variando de nove a quatorze anos: Zé Guardinha, Cadão, eu, Luiz Victor, Joninho, Luís (irmão do Zé Guardinha), os irmãos Cury (Sandoval, Junior e Nash) e alguns eventuais como o Frankinho, Tímanca, Durvalino, Benê, Eli, Lica e outros. Nossas atividades eram incessantes, todos os dias inventava-se alguma coisa, a criatividade inesgotável. Fizemos uma vaquinha e compramos um barco, se é que se pode assim chamar um resto de embarcação muito usada, com dois metros de comprimento, construída com tábuas velhas e cheia de rachaduras. Com muito piche (asfalto) e corda, calafetamos o nosso novo meio de transporte e o resultado foi assustador: não é que aquilo flutuava e fazia muito pouca água! A seguir um pescador nos deu uma canoa velha escavada em um tronco, toda rachada e pintada de preto. Nova operação de calafetar, muito asfalto e corda preenchendo as rachaduras e também funcionou! Ao final dos trabalhos de recuperação da canoa, fizemos uma guerra com o asfalto e eu fiquei com o cabelo todo grudado. Ao chegar em casa, fui direto ao salão do Benézio (Ebenezer, filho do sr. Brígido) e rapei a cabeça. Minha mãe apareceu quando eu, ainda pelado, estava saindo do banho. Partiu para cima de mim de chinelo em riste, muito brava. Segurei as mãos dela o quanto pude, mas seus gritos me fizeram soltá-la e correr escada acima, com Dona Zeny em meu encalço. Foi hilário: um moleque careca correndo pelado e levando chineladas. Voltemos à navegação. Nossa frota, composta de dois barcos, ficava apoitada próximo aos fundos do São Vicente Praia Clube. Nas marés baixas os barcos ficavam apoiados no mangue e tínhamos que empurrar as embarcações até atingir o mar. Cheios de lama, remávamos por toda a região compreendida entre a Ponte Pênsil e o Rio Branco, chamada de Mar Pequeno. Em baixo de onde passa a Ponte do Mar Pequeno, ficava a coroa, uma grande área de areia que só aparecia nas marés muito baixas. A gente usava como praia, encalhava os barcos ali e nadava em uma água bem mais limpas do que as de hoje. Nós pescávamos com linha de mão e. nos pós trovoadas, íamos caçar caranguejos, pois reza a lenda que eles saem das tocas nessas ocasiões. Descíamos do barco, nos besuntávamos de lama para mosquito não picar e começava a caçada. Tinha que observar se havia algum caranguejo, correr atrás dele. Muitos se escondiam nas tocas e era necessário se deitar no mangue, enfiar a mão e puxar o bicho. Essa operação requeria uma técnica de modo a não perder um naco da mão com uma mordida dos ferrões em forma de pinças. Sempre umas das garras é bem maior que a outra e se a mordida for com o ferrão grande pode causar problemas. Eu não tinha essa prática e tratei logo de arrumar uma luva de lona bem grossa que me protegia. Chegar em casa cheio de lama mesmo após um banho de mar era uma loteria: a surra podia ser de cinta ou de chinelo. O melhor de tudo vinha no dia seguinte ou no mesmo dia: comer o que havíamos pescado ou caçado, na casa do Zé Guardinha que tinha um terreno vazio ao lado. Aquela turma de moleques sentava em volta de um caldeirão e se banqueteava.
Paulo Miorim 06/02/2019