Nasci com uma alma antiga, é verdade. Justificativa? Missão de enxergar o mundo de trás pra frente? Deve ser por isso que sou fascinada pela melhor idade ou pela sabedoria que só ela carrega, nas costas marcadas pelo peso das decisões tomadas. São uma enciclopédia da vida. Muitas páginas, definições, histórias, emoções.
Desde que me mudei para o apartamento novo, há mais ou menos um ano, alimento minha saudade diária dos meus antigos vizinhos com ligações e visitas frequentes. Eles são uma espécie de família fora de casa. O senhor, me chama de filha e me trata como se fosse, já ela é uma espécie de mãe, avó, amiga.
São eles um casal lindo, cuja idade desponta na casa dos oitenta. Ambos são “fora da caixinha”. Fazem quase tudo, mas como nada é perfeito, uma hora a fatura chega... E para o doninho ela parece dar alguns palpites: dois AVC’s, um infarto, enfizema pulmonar, marca-passo e agora a perda gradativa da visão.
No olhar em tons azuis, estão as marcas do tempo, vistas na diminuição da acuidade visual. As manchas de pele tomam parte do rosto. As linhas, antes raras, fazem sulcos imensos e os códigos de barra já atestam a data de fabricação.
A revista é sua companheira diária (ou era). Depois de tomar as prescrições médicas, divididas em caixinhas, são sete a cada 12 horas, o café é reforçado pelo leite rico em vitaminas, perdidas com o tempo. Os ossos já não são os mesmos, o corpo também não.
Nas indas e vindas, do quarto para a sala, da sala para cozinha, da cozinha para a sala de televisão, o mapa vai sendo desenhado e os limites demonstrados.
Aquele homem, nascido de uma família italiana, trabalhava desde criança, na plantação de fumo. Eram 7 irmãos que nunca deixaram de acordar as cinco para cumprir as obrigações. Até que um dia, o pai, ríspido e violento, foi passado para trás numa negociação que o fez perder toda a colheita do ano. Ficariam eles à mercê do nada. Passariam fome. Mas um deles, esse meu vizinho, decidiu romper a cadeia dos antecessores e fugiu de casa, mas antes, apanhou de vara grossa de marmelo.
Partiu para o interior de Minas, alimentado pelo sonho de trabalhar numa mineradora, e assim o fez, até se aposentar.
Trabalhou com firmeza, honestidade e disciplina. Trouxe os irmãos para Ouro Preto e até o pai, que o excomungou na saída, veio morar em sua casa.
Quando enfim, com a família constituída, todos os filhos na faculdade, resolveu se aventurar no ramo das fotografias, se tornando ícone na região em virtude do feito. Foram noites inteiras debruçadas no balcão para entregar serviços acordados.
Um homem de respeito que acreditava que honra era algo firmado no contrato verbal e deu sua vida por suas palavras.
Agora vendo-o de cá pra lá, de lá pra cá, fico me perguntando se a natureza não é perfeita. O que ele conceitua como inutilidade, o fato de não produzir mais como produzia, não seria um presente, uma espécie de compensação por todo o trabalho realizado durante anos? Não seria a velhice uma sentença onde cumprir a pena fosse um afago do dono da vida? Não seria a época de descansar a alma, colocar os pés pra cima e debruçar-se na “inutilidade” como se fosse uma medalha universal sem pesos?
Daí vem minha indagação: A “inutilidade” da velhice não seria o ápice da vida? Quem foi que disse que nascemos para produzir o tempo todo? De onde vem a ideia de que produzindo é que somos bons? Não poderíamos nós, desfrutar dessa etapa olhando para o ciclo e se valendo dele para ampliar nosso horizonte? Fazer o que gosta, sem pressa; Viagens; Rabiscos em quadros; Letras feitas à mão; e cores nos livros.
Fato é que, à beira da morte, perdemos nossa noção de responsabilidade com o tempo, tão voraz, e insistimos na disposição das cartas como se fossem eternas, sem sublimar as perspectivas que o próprio tempo traz.
As limitações são uma espécie de acordo universal para que sejamos cuidados, mais amados e poupados.
Naqueles passos leves, no sorriso de gengivas, está também a garra de quem nunca se entregou. Mas como a vida passa muito rápido, é improvável que percebam que o maior legado é o exemplo.
Na solidão que absorvem pelas ausências dos seus, que giram pelo mundo cuidando de suas próprias vidas, está também a esperança, só vista de fora, por quem os aprendeu a amar.
Queria levá-los pra casa, rir das histórias do tempo que, tendo ouvido milhões de vezes, sempre recebem um fato novo. Mas eles preferem viver em seu canto, conversando sobre a morte e as ações que a sucedem. Inclusive, já me avisaram que não querem morar com os filhos, nem as filhas. Especialmente por já deixarem suas marcas sobre a mesa do café e almoço. Nem todo mundo está preparado para ser “pai dos pais”...
Espero que tenham vida longa! Dá até um aperto no coração! O que eles nominam inutilidade chamo de habilidade... De ver-se grandiosos diante do espelho, mesmo que a estética contradiga. O legado imaterial construído não tem preço, já o material, se perde porque não tem valor.
(Imagem ilustrativa retirada da internet/ domínio público)
Desde que me mudei para o apartamento novo, há mais ou menos um ano, alimento minha saudade diária dos meus antigos vizinhos com ligações e visitas frequentes. Eles são uma espécie de família fora de casa. O senhor, me chama de filha e me trata como se fosse, já ela é uma espécie de mãe, avó, amiga.
São eles um casal lindo, cuja idade desponta na casa dos oitenta. Ambos são “fora da caixinha”. Fazem quase tudo, mas como nada é perfeito, uma hora a fatura chega... E para o doninho ela parece dar alguns palpites: dois AVC’s, um infarto, enfizema pulmonar, marca-passo e agora a perda gradativa da visão.
No olhar em tons azuis, estão as marcas do tempo, vistas na diminuição da acuidade visual. As manchas de pele tomam parte do rosto. As linhas, antes raras, fazem sulcos imensos e os códigos de barra já atestam a data de fabricação.
A revista é sua companheira diária (ou era). Depois de tomar as prescrições médicas, divididas em caixinhas, são sete a cada 12 horas, o café é reforçado pelo leite rico em vitaminas, perdidas com o tempo. Os ossos já não são os mesmos, o corpo também não.
Nas indas e vindas, do quarto para a sala, da sala para cozinha, da cozinha para a sala de televisão, o mapa vai sendo desenhado e os limites demonstrados.
Aquele homem, nascido de uma família italiana, trabalhava desde criança, na plantação de fumo. Eram 7 irmãos que nunca deixaram de acordar as cinco para cumprir as obrigações. Até que um dia, o pai, ríspido e violento, foi passado para trás numa negociação que o fez perder toda a colheita do ano. Ficariam eles à mercê do nada. Passariam fome. Mas um deles, esse meu vizinho, decidiu romper a cadeia dos antecessores e fugiu de casa, mas antes, apanhou de vara grossa de marmelo.
Partiu para o interior de Minas, alimentado pelo sonho de trabalhar numa mineradora, e assim o fez, até se aposentar.
Trabalhou com firmeza, honestidade e disciplina. Trouxe os irmãos para Ouro Preto e até o pai, que o excomungou na saída, veio morar em sua casa.
Quando enfim, com a família constituída, todos os filhos na faculdade, resolveu se aventurar no ramo das fotografias, se tornando ícone na região em virtude do feito. Foram noites inteiras debruçadas no balcão para entregar serviços acordados.
Um homem de respeito que acreditava que honra era algo firmado no contrato verbal e deu sua vida por suas palavras.
Agora vendo-o de cá pra lá, de lá pra cá, fico me perguntando se a natureza não é perfeita. O que ele conceitua como inutilidade, o fato de não produzir mais como produzia, não seria um presente, uma espécie de compensação por todo o trabalho realizado durante anos? Não seria a velhice uma sentença onde cumprir a pena fosse um afago do dono da vida? Não seria a época de descansar a alma, colocar os pés pra cima e debruçar-se na “inutilidade” como se fosse uma medalha universal sem pesos?
Daí vem minha indagação: A “inutilidade” da velhice não seria o ápice da vida? Quem foi que disse que nascemos para produzir o tempo todo? De onde vem a ideia de que produzindo é que somos bons? Não poderíamos nós, desfrutar dessa etapa olhando para o ciclo e se valendo dele para ampliar nosso horizonte? Fazer o que gosta, sem pressa; Viagens; Rabiscos em quadros; Letras feitas à mão; e cores nos livros.
Fato é que, à beira da morte, perdemos nossa noção de responsabilidade com o tempo, tão voraz, e insistimos na disposição das cartas como se fossem eternas, sem sublimar as perspectivas que o próprio tempo traz.
As limitações são uma espécie de acordo universal para que sejamos cuidados, mais amados e poupados.
Naqueles passos leves, no sorriso de gengivas, está também a garra de quem nunca se entregou. Mas como a vida passa muito rápido, é improvável que percebam que o maior legado é o exemplo.
Na solidão que absorvem pelas ausências dos seus, que giram pelo mundo cuidando de suas próprias vidas, está também a esperança, só vista de fora, por quem os aprendeu a amar.
Queria levá-los pra casa, rir das histórias do tempo que, tendo ouvido milhões de vezes, sempre recebem um fato novo. Mas eles preferem viver em seu canto, conversando sobre a morte e as ações que a sucedem. Inclusive, já me avisaram que não querem morar com os filhos, nem as filhas. Especialmente por já deixarem suas marcas sobre a mesa do café e almoço. Nem todo mundo está preparado para ser “pai dos pais”...
Espero que tenham vida longa! Dá até um aperto no coração! O que eles nominam inutilidade chamo de habilidade... De ver-se grandiosos diante do espelho, mesmo que a estética contradiga. O legado imaterial construído não tem preço, já o material, se perde porque não tem valor.
(Imagem ilustrativa retirada da internet/ domínio público)