SEM ILUSÕES
Na escada, cada qual em um degrau, a conversa transcorria com dificuldade e grandes pausas doloridas. Era um momento de decisão. A decisão mais básica da maturidade: com quem vamos passar o resto de nossas vidas. Ainda conservam nas bochechas um pouco da gordura da infância e no entanto, têm que tomar uma decisão dessas sem saber a metade do que sabemos aos trinta ou quarenta.
Ele está tenso e inclina o corpo para a frente, na direção da caixinha de joalheria que carrega entre as mãos. Ela reproduz a posição dele, com as mãos vazias. Já estão nessa escada há duas horas e parecem capazes de quedar congelados nessa posição a noite toda. Estão prolongando o que pode ser o último momento deles juntos.
É uma história de amor que se desenrola agora, no seu momento mais escuro. Eles se amam. Apesar da pouca idade, vinte anos cada, se amam desde os quinze. Se é assim, por que está tão difícil decidir? Andam juntos desde o ensino médio, moram perto, entram e saem um da casa do outro como se fossem da família. Quem vê um, pensa logo no outro. Todos os requisitos estão presentes, principalmente o amor profundo que se entrega totalmente nos gestos, na voz e nos sonhos.
O problema é que ela cansou de ser pobre. Ele já se conformou, ela luta como pode. E para os jovens de famílias carentes, a maior arma de luta é seu próprio corpo. Dele esperam a força para trabalhar, ou o encanto que atraia alguém mais afortunado. E em resumo, ela conheceu outra pessoa, dona de grandes recursos financeiros e de um estilo de vida que ela sempre sonhou ter. A escolha desta noite é toda dela.
Pode passar o resto da vida com seu grande amor, sim. Acordando às cinco e meia para pegar o ônibus lotado, almoçar no pé-sujo e cumprir o restante da jornada até voltar para casa, pendurada em outro ônibus igualmente lotado e malcheiroso. Quem sabe estudar à noite. Junto com ele, que, sendo mecânico, ganha razoavelmente bem – quando ganha. Pode viver ao lado dele para sempre, contando com o amor um do outro, pode ter uma vida igual à dos pais. Aos trinta já vão parecer que tem quarenta, e aos cinquenta quem sabe tenham ao menos uma casa própria.
Ou pode render-se ao sentimento de segurança financeira, algo que nunca conheceu em sua breve vida. Se o fizer, terá que deixar seu grande amor sumir no passado, contando com os dias para suavizar, pouco a pouco, uma perda sem compensação possível. Poderá viver uma vida menos sacrificada, criar os filhos com escola particular e todos os brinquedos que nunca tivera, todas as refeições que por vezes lhe foram negadas.
Ela foi franca com ele e a cada palavra tirou-lhe um pedaço de autoestima. Vai perder o amor porque é pobre. Mesmo assim, ele insiste que ela aceite o anel. Tem uma pedra pequena e custou-lhe todas as economias e quem sabe quais sacrifícios. Mas é um símbolo de que ele está disposto a lutar por ela com tudo que tem. Pena que ela já decidiu.
Amanhã ele vai acordar sozinho e ainda assim, manter a certeza de que é amado. Porque é. Vai viver com uma presença que agora é ausência, vai encarar a luta diária faltando um pedaço de si. Quem sabe encontre outra pessoa, mas nunca mais vai ser a mesma coisa. E ela vai manter o anelzinho vida afora, joia modesta, mil vezes mais preciosa do que seu valor monetário. Eles vão se amar por toda a sua vida; mas ela vai viver a vida real sem ilusões.
Tangará da Serra, 11/09/2020.