A vida e seus nãos
Dizia Padre Antônio Vieira: “Por mais que enfeiteis um não, sempre será amargo; por mais que o enfeiteis, sempre será feio; por mais que o doireis, sempre será de ferro. Em nenhuma solfa o podeis pôr, que não seja malsoante, áspero e duro.” Com esta máxima abro minha primeira crônica neste espaço. Li pela primeira vez estas palavras quando entrava no portão da universidade, numa manhã de sábado, num dia de céu azul e sol claro. Agora me valho delas para escrever tanto tempo depois.
Pensei nisso enquanto me lembrei de um dia em que fui procurar emprego numa livraria onde eu era frequentador assíduo. Eu havia me formado em licenciatura em português e espanhol, mas os tempos eram duros. A ideia era vender livros, expressar meu amor por eles, dividir meus saberes e, ao decidir sair do emprego, um amigo resolveu deixar a vaga pra mim. Não há nada no mundo que eu ame mais do que uma livraria. O cheiro do cappuccino da cafeteria, o semblante de homens e mulheres folheando o livro, pais indicando aos filhos os primeiros autores. Ali eu imaginava descolar uma grana até que aparecesse a tal vaga de professor. Dar aulas naquele momento não estava nada fácil. Um amigo me contou, inclusive, de um aluno que tentou bater nele na sala de aula. Uma mulher com quem eu estava flertando, que também era professora, narrou o dia em que um adolescente tentou acertar uma carteira na cabeça dela. Fora o salário no começo de carreira, os colégios longe de casa, entre outras coisas.
No dia da entrevista ali estava eu diante do empresário que iria me contratar. Ele deu um sorriso amarelo, olhou daquele jeito seco e começou a me crivar de perguntas cada vez mais absurdas como “Você saberia fazer o trabalho de marketing para a livraria?”, “ Você conseguiria trabalhar com a contabilidade da empresa?”, “Conseguiria fazer o trabalho de office-boy na rua e ajudar na livraria em dias de maiores movimentos?” Ele queria que eu fosse ao mesmo tempo publicitário, office-boy, vendedor, contador. Eu perguntei se não seria para vender literatura, mas ele disse que “ali se fazia de tudo”. Nesse tempo eu já organizava eventos de poetas, já tinha colaborado com um conto para uma antologia, era organizador de oficinas de leitura e amava apaixonadamente os livros. Naquele momento a vida me dizia um não. Triste, penso, sombrio. Eu ouvia com raiva e com pena de mim mesmo.
Nos dias que se passaram minha tristeza era notória. Quem me visse na rua lembraria do poema “Dor elegante”, do Paulo Leminski. Numa tarde de uma segunda-feira tomei um lotação, fui até um sebo no centro e comecei a observar o vendedor. Ele não olhava para mim, não via nenhum cliente, era ensimesmado e os olhos estavam voltados para o computador. Perguntei por um livro qualquer e ele disse de lacônico: “Não tem não.” Esperei que ele consultasse o acervo para conferir, mas ele não o fez. Fui tomar um café triste ao saber que estava sendo preterido por um homem como aquele.
“Viver é coisa de louco”, como diz uma antiga canção do Wilson Simonal. Ao observar um homem ou mulher na rua sempre me questiono: quero saber como ele ou ela lida com os nãos que a vida diz de vez em quando. Um rapaz quer mudar de emprego, mas por alguma razão não deu certo. Ele queria aquela mulher, mas ela inventou de casar-se com outro. Aquela mulher queria ir para os Estados Unidos, mas o chegou o tempo da pandemia e estragou tudo. A vida nos nega uma porção de coisas. Uns reagem com culpa diante das negativas. Outros com raiva. E você?