Olhos puxados da bugra velha, cabelos grisalhos, encarcerada em um corpo de muitas dores e traumas viajam pelos beirais do tempo, pelos cantos e recantos da memória, para lugares onde tinha olhos de menina, espertos e esperançosos, num corpo magro e carcomido pela fome.

O lugar que ela vivia era no meio do mato, numa casa de tábuas escurecidas, onde habitavam crianças como ela e uma mulher alta, ossuda, com olhos tristes e cabelos negros. A bugra-Mãe, a Nelsinda.

O alimento era parco, quase nenhum e o agasalho, um xergão onde todos se aninhavam, não há certeza de quantos estavam ali, seus rostos desapareceram nas dobras do tempo, sei que estavam e se abraçavam para se aquecer e esquecer da fome.

As brincadeiras eram à volta de um lago, cercado de capins e árvores. Ali ela criava seu mundo de fantasia, embalada pelas brisas e aromas que me cercavam.

A maratona diária era ir às ruas, todos cobertos por trapos, com os cabelos duros e pés no chão atrás de alimento. Iam em algumas casas que os acolhiam.

Numa dessas casas, havia uma mulher, cabelos curtos, de estatura mediana e que trabalhava numa máquina de costura, ela, Tia Adélia, tinha muitos retalhos, que dava à menina para brincar em baixo de uma mesa alta onde cortava os tecidos.

Certa vez, lhe deu uma boneca de pano, ela rodopiou feliz e a vestiu com muitas roupas coloridas. Havia outros momentos alegres, como um café cheiroso e um pãozinho macio, e ela sorria feliz e acredita que era o lugar onde sua Mãe trabalhava. Ficavam bastante tempo naquela casa.

Mas havia momentos tristes, que ela não compreendia, um homem gordo e de olhar duro, pegava aquela mulher pela mão e a levava para o quarto e ela, embaixo da mesa onde brincava, ouvia seus gritos. Hoje entende, aquela mulher que fazia roupas que a encantavam, sofria violência doméstica.

A delícia de viajar ao passado é poder confrontar os medos, pensar e repensar as vivências que formaram o seu ser e o modo como influenciaram o seu olhar pela vida.

O que dói das lembranças, é ver aquele homem mau, o olhar triste da sua Mãe, a pobreza da casa e a fome doendo.

No entanto, depois de viver tudo isso é estar feliz com o que tem hoje, e o que ficou incrustrado na sua mente e na alma, os carinhos, cuidados e generosidade daquela família que dividia a pobreza.  Vale a pena lembrar e seguir em busca de seus sonhos, são lições necessárias para prosseguir.

Do lar pobre que vivia, e que não queria abandonar de jeito nenhum, foi preciso uma surra de doer o lombo para deixar a Mãe e os irmãos. Resignou-se, mas criou asas.

As asas eram brilhantes e voaram para outra cidade, outro mundo, outra vida. Naquela mesma casa, onde brincava embaixo da mesa, uma família lhe adotou, gente elegante, perfumada, que a trouxeram para a cidade num trem: a Maria fumaça. A bugrinha ganhou sapatos e roupas novos e viajou feliz por aquele trem. Imagem inequecível.
Aquela viagem formou uma mulher, que renasceu num trilho conduzido por esperança e fé, que estudou, trabalhou, casou, teve filhos, construiu sua história e a lição que leva pela vida, e acredita, que por mais difícil que pareçam as coisas, não podemos deixar de  sonhar.

A vida a ensinou a ser sensata, o que é quase sempre, forte e obstinada, com muitas perspectivas construindo a sua história, desde menina, como adolescente rebelde, mulher e mãe dedicadas.

Recria-se a cada dia e sem saber porque viajou aos confins de seus elos internos para entender as vivências e esse mundo onde vive-se, que às vezes parece tão impiedoso e deprimente, às vezes extraordinário, mas muito desigual, esplêndido e por vezes bocejante.

Na rotina necessária dos dias a menina que habita,  do alto de seus mais de 60 anos cultiva a fé que a move e luta persistente para não se deixar influenciar pela falta de perspectivas ou por cenários obtusos.

Segue sem se perder, porque a vida é curta, sem a previsão certa do fim entendimento do momento.
A vida parece ser tão pequena, tão breve para o tanto que precisamos viver. 
Viaje.


Texto publado no livro Sem Fronteiras pelo Mundo, que está na Feira do Livro de Lisboa 2020.

imagem cbgnews.com.br
 
Soninha Porto Flor
Enviado por Soninha Porto Flor em 09/09/2020
Reeditado em 09/09/2020
Código do texto: T7058668
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