INVENCÍVEL
Ela tem uma filha de 65 anos que ainda vive às custas dela. É uma presença constante, entrando e saindo da casa mesmo com a pandemia reclamando vidas na rua. Não tem cuidado consigo, que dirá com a mãe? Fala gritando, e constantemente descamba para a agressão verbal. Quer todos os seus desejos satisfeitos. Tem a desculpa de sofrer de uma leve deficiência mental. Mas sabe a diferença entre certo e errado. Senão, não negaria que faz algumas coisas que fez.
Não tem autoestima. Anda sempre desmazelada e usa algum produto nas axilas, de cheiro adocicado e enjoativo, que, combinado com o odor natural do corpo, torna-se repulsivo. Nega que é totalmente dependente da mãe, mas tudo em sua vida – a edícula em que mora, a roupa que veste, o alimento que come – vieram da mesma mão.
Contemplo as grandes façanhas do mundo onde homens e mulheres fortes tomaram decisões e sofreram consequências como heróis, conseguindo assim vitórias e transformações da sociedade. Contemplo a ideia icônica de força na figura do Super Homem, com seus poderes e seus músculos, e de outros super-heróis do mesmo naipe. Contemplo a força moral de Gandhi que, sem um gesto de agressão, deu novo formato às relações de casta no seu País. Penso que a esperança de atingir um objetivo os sustentou e inspirou, tornando-se força do que já era forte.
E contemplo essa velhinha que anda tropicando e inclinada para a frente. Enxergando muito mal, tendo crises de labirintite, dormindo mal. Contemplo suas pernas inchadas de alguma não diagnosticada insuficiência cardíaca. Só carregar o corpo que lentamente a trai é fardo suficiente. E a vejo todo dia de pé e pronta para fazer o que faz há mais de meio século: cuidar da filha. Ela não espera do mundo que se abra para acolher a criatura diferenciada. Não espera que venha o tal de marido-solução e leve consigo a filha para viver dignamente. Não espera sequer que a filha mude de comportamento. Não haverá recompensa nenhuma ao fim de sua longa luta. Mas ela luta mesmo assim.
A luta dos heróis tem hora para acabar. Quando o inimigo está vencido, quando a terra está salva, quando o objetivo foi atingido. Em algum momento a situação vai mudar e ficar mais próxima do ideal. Tudo vai melhorar. Mas para esta velhinha, não. Nada disso vai acontecer. Ela vai continuar até o fim de seus dias cuidando da filha, e quem sabe até mesmo além do seu último suspiro.
A ideia de força que temos precisa de revisão. Ela está em pessoas que lutam a mesma luta todos os dias, por dever ou por amor. Não numa explosão momentânea de energia, na resolução violenta de um conflito, no estar de pé no meio da conflagração. Ninguém fala da força silenciosa. O herói pode não ser o mais forte e sim, o mais persistente. Alguém tem que cuidar do mundo quando ele está em ordem. Alguém tem que permanecer no posto quando os demais debandaram. Alguém tem que aguentar o peso dos dias, que, somados, valem por um esforço sobre-humano.
Ano que vem, a vida vai encontrar a situação na mesma configuração. E a velhinha ainda estará de pé, fazendo suas coisas miúdas, racionando sua aposentadoria, poupando qualquer tostão para o futuro dessa filha. Não sei se ela se revolta: talvez já tenha alcançado um ponto além da revolta. Não sei se ela descansa: talvez o cansaço já se tornou parte de sua vida. Não sei se ela viveu algum dia: a vida talvez seja um bem precioso demais para ficar ao alcance de quem tem que trabalhar como Sísifo. Não há nada que se possa fazer para alterar a situação: é tudo irremediável. Todos estão presos aos seus papéis e ninguém busca soluções fáceis.
E lá em cima, soberano e silencioso, Deus observa tudo...
Tangará da Serra, 07/09/2020.