Um milhão de vezes o Pássaro Madrugador

Um milhão de vezes, quando é lua cheia, vejo arribar o Pássaro Madrugador. Com suas asas grossas de zinco tapa em cheio a bochecha da lua e me atira ao mais denso de todos os breus. Arraso-me. Todo o conhecimento do mundo, penosamente adquirido na reflexão contínua, é posto em dúvida e a mim mesmo me questiono em tais momentos, na incerteza relativista da minha própria existência. Um milhão de vezes, o Pássaro Madrugador.

Sei que me espera a cavalgada nas trevas. Tatearei, tropeçarei, me arranharei, muito de mim será destruído. Tomarei muitas vezes um caminho e voltarei depois de muita légua coberta, pois nem todo caminho vem dando na venda. Mas tenho de ir, por mim esperam os companheiros com o coração coberto de segredos e a capanga abarrotada de paçoca. Sairemos juntos ... quem sabe...

Escreverei um milhão de vezes. Todos os temas, todas as formas, cada qual exatamente como se fora a última oportunidade de expressão. Até que a ampulheta das horas se extinga ou o Pássaro Madrugador não acoberte mais a lua cheia. Ou, se essas coisas forem impossíveis, até que eu me extinga, nada mais tendo a perguntar. Não sei pra que nem por quê. Só sei que é assim e tenho de prosseguir a cavalgada nas trevas, porque perseguir as criaturas é apenas uma cavalgada nas trevas. Saído de mim, começam logo a se avistar as imensas dunas do deserto e a se prenunciarem as tempestades de areia. Mas parto. Nas linhas do céu, há como que um prenúncio de fracasso.

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Há ali um velho, as faces encovadas. Sou eu mesmo daqui a outro tempo. Pergunto:

- E então?

- Nada.

- Cansou?

- Cansaste.

-Tem sede?

- Tens. E terás.

Será que nada mais se resolverá e estarei buscando ainda quando velho? Há sentido nisso? E é preciso haver sentido? Em que lugar estão as pessoas? Quem são elas? Vou sair com os companheiros. Estão lá na venda me esperando. Vamos sair juntos, comendo paçoca e conversando. Aí, quem sabe...

(Brasília, 12/74)