Matrioska
Flanava pelo centro comercial quando avistou uma loja de brinquedos antigos num canto de pouquíssimo movimento. Não entendia o porquê, mas foi impelido por uma força curiosa e resolveu investigar o estabelecimento.
Abriu a porta e ouviu o silvo dos guizos. A iluminação era fraca e amarelada e o aroma uma mistura de carvalho e saudade. Não havia lógica na exposição dos brinquedos, apenas um emaranhado de estímulos visuais e afetivos que o atordoavam como um labirinto de memórias.
Demorava-se em cada prateleira, cada corredor. Manuseava devotamente aquela memorabília como um clérigo a uma hóstia. Deslizava seus dedos como quem afaga o rosto de um recém-nascido. Suspirava toda vez que se reconhecia em um cheiro, uma cor, um toque. Entrou em uma imersão tão profunda com sua história que nem mesmo o responsável pelo local ousou incomodá-lo.
Voltou à realidade por culpa de um bronco e seu resmungo quase incompreensível - “mas quem iria querer algo assim?” – enquanto devolvia rispidamente o objeto ao seu lugar e despedia-se com a frieza e a pressa dos insensíveis. A atitude aguçou sua curiosidade e, ao conferir o que deixara o tal homem tão irritado, deparou-se com uma boneca de cerâmica com a superfície, de cores pálidas, coberta por rachaduras. Concordou com o homem.
Percebeu que estava naquele lugar há muito tempo e era hora de voltar ao mundo real. Foi quando, ao examinar a boneca uma última vez, percebeu uma rachadura que circundava toda a boneca e, ao girar cada lado em sentidos opostos a boneca se abriu e revelou uma outra boneca menor em seu interior. Ela era igual à maior, mas estava em melhor estado de conservação. Aquilo o intrigou e o fez sentir-se especial. Ele descobrira um segredo da boneca que, em recompensa, re-velou uma versão mais bonita de si mesma. Repetiu o gesto, mas não obteve o mesmo resultado. Forçou. Nada. Foi mais atencioso e cuida-doso com ela e encontrou outra abertura que, ao puxar, revelou outra boneca ainda mais vívida. Quanto mais profundo, mais vivas eram as cores e mais lisa sua superfície deslumbrando-o a todo o mo-mento.
Quis saber o preço da boneca, pois estava decidido a levá-la. Imaginou que seria muito valiosa devido à quantidade de outras bonecas que iria adquirir. O responsável lhe disse que era realmente muito valiosa e que, por isso, não havia nenhum preço a ser pago. Mas ele, ao dedicar a devida atenção, zelo e respeito por ela, demonstrou possuir o mesmo valor e que isso o tornava merecedor de levá-la consigo. Com os olhos marejados fixos na boneca agradeceu ao senhor e despediu-se sem nunca mais retornar à loja.
E diante de tantas possibilidades de diversão com os mais variados brinquedos, decidira passar a vida contabilizando segundos para retornar à sua boneca e tentar desvendar mais uma linda versão todos os dias.