Burocracia x burocracia
A narrativa registrada aqui vai do jeito que a ouvi de um amigo do Aristides, este, sim, um sujeito chegado a polêmicas, a discussões em questões comezinhas, ao contraditório, ficando às vezes muito longe das contemporizações que a vida oferece.
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O fato é que o nosso personagem perdera a mãe e, sendo o administrador das finanças maternas, lá foi ele procurar a repartição pertinente, para cancelar o benefício de pensionista, de que ela usufruía por ser esposa de funcionário público ligado ao Exército.
Em lá chegando, foi recebido por um sargento, que se inteirara do óbito e iniciou o procedimento protocolar. Aristides prestava as informações e os formulários eram preenchidos na santa paz da burocracia, não fosse pela última solicitação do sargento:
– Mês que vem o salário será depositado normalmente. O senhor terá de assinar uma declaração permitindo a devolução aos cofres públicos.
Foi aí que o Aristides discordou:
– O senhor me desculpe, mas não posso assinar sem antes receber.
– Mas por quê? – indagou o atendente sargento.
– Dá que o mês que vem o dinheiro não seja depositado.
– E daí?
– Daí que eu fico com uma dívida. Eu assinei que devolvo.
– Mas o senhor está insinuando que o Exército?!
– Não estou insinuando nada. O senhor que é que está querendo adivinhar o que penso.
– Então terei de chamar o capitão.
– E por gentileza, que não demore muito, porque eu tenho dentista marcardo – respondeu Aristides, consultando o relógio de pulso.
O capitão chegou-se e pouco fez senão tentar explicar que era um procedimento de praxe, mas nada de o homem ser demovido. A saída foi chamar o major, que, sério e com poucas palavras, disse que era necessário o cumprimento dos trâmites. Aristides disse que não ia apor sua assinatura a algo que poderia comprometê-lo em um futuro bem próximo e machucando a parte mais sensível de seu corpo, o bolso. O major olhou-o com um olhar irredutível, mas Aristides não aquiesceu:
– Então terei de ligar para o meu advogado.
– Desde que não seja advogado de porta de cadeia – ironizou o major.
– De porta de cadeia não sei se ele é; só sei que é presidente da nossa OAB – retrucou o nosso contribuinte.
Já se fazia tarde. O major – não se sabe se pelo tédio vespertino ou pelo impacto do advogado do oponente – acha uma solução conciliadora:
– Está bem, senhor Aristides. Aguardamos o senhor no mês que vem, para renunciar ao crédito.
Mas a história,meu caro leitor, não acaba aqui sem a inserção deste narrador:
– E ele voltou lá? – perguntei ao amigo do Aristides.
– Voltou nada. Disse que o atestado de óbito era suficiente. Além do mais, estava revoltado com aquela burocracia, que, por muito pouco, não o fez perder o dentista.