Pensamentos de uma manhã de domingo
A faixa de sol queima a calçada da loja. Toda vez que a luz atinge uma marca na lajota eu já sei que tá na hora de ir embora. Eu atendo uma mulher que parece estar desesperada pra reconquistar o próprio marido que caiu nas garras de "alguma puta", como ela mesma disse. Acho curioso. Ela está agora imitando alguém que tanto despreza pra conseguir de volta alguém que talvez nunca foi seu.
Ela leva a fantasia e alguns produtos do sex shop. Levo ela até a entrada, ela fala que eu sou muito gentil, mas na verdade eu só queria ver se a luz já atingiu a marca na lajota. Me despeço da mulher, que agora sai confiante da loja. Não contenho o pensamento "é hoje que ela consegue virar uma puta também". Rio comigo mesma e olho a lajota. Já está quase lá...
Lembro de quando estava esse horário na faculdade. A fila do restaurante universitário era lugar de matar a fome de comida e, curiosamente, também era a hora de matar a fome de ver alguém, que sempre descia as escadas e parava pra me dar um abraço e um beijo. Penso onde ele deveria estar agora...
Entra outra mulher. Reconheço, foi a mesma mulher que teimou sobre o tamanho de um sutiã comigo e agora quer trocar. "Mas não trocamos peça íntima, eu falei pra senhora, eu até..."
Não interessa. Lá foi ela falar com a dona da loja, que também está com fome e quer logo fechar. Ela mora longe. Observo elas discutindo, até que finalmente a mulher sai de lá satisfeita. Trocou o sutiã pelo que eu tinha falado que era o tamanho certo pra ela.
O sol já está na marca. Hora de fechar. Hora de voltar pra casa. Desmontar a loja é mais fácil que montar. Destruir o trabalho de uma manhã inteira arranhando manequins no chão. Algumas pessoas me lembram manequins, sabe? Parece que só saem de casa pra exibir suas roupas novas e nada mais. Não têm uma palavra que se aproveite. É capaz de eu confundir e arrastar uma delas pra dentro também.
Finalmente! Posso voltar pra casa. Hoje eu não estou legal, não. Mas pelo menos estou arrumada. Só não quero virar um manequim também. Mas hoje sinto que não tenho uma palavra que se aproveite. A frase mais sincera que digo hoje, a que não vou ensaiar pra impressionar ninguém e que é quase impossível de gerar dúvidas está prestes a escorrer da minha boca. "Um guaraná de três, por favor. Com flocos e chocolate." A mulher entendeu. Ela bate no liquidificador e me dá o copo. Eu geralmente vou por aquela rua, a mais movimentada. Mas confesso que sinto vergonha de andar na rua sem máscara. E como precisava tirar pra tomar o guaraná, eu corto caminho por outra rua. Caminho mais longo, mas sem vergonha. Vou tomando o guaraná enquanto vejo meu reflexo nas portas. Essa sou eu?
Desço a ladeira da rua de casa e me sinto livre. Não preciso mais andar com pompa. Todo mundo aqui já me viu desarrumada. Chego em casa. Lembro de alguém ter me falado que morrer é voltar pra casa. Eu respiro fundo. Estou em casa.