Gran Finale!
Sequência do texto 243 "O Senhor é Sensível Hein"
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Fazia uma semana da fatídica quinta-feira em que fui tratar o canal e sofri bastante, ficando a conclusão para este dia que se iniciava.
Acordei tranquilo e confiante, seria o primeiro paciente no horário das nove horas da manhã, esperando encontrar a doutora melhor, pois na sessão anterior, ela estava literalmente acabada - exausta. Não fiquei preocupado ou traumatizado pelo acontecido naquela tarde, mas poderia, ao sentar-me novamente na cadeira, ficar tenso, voltando a sentir a dor lancinante daquela sessão. Mas, estava valente como sempre.
Tomei um leve café da manhã e fui logo para o consultório, novamente de carro por precaução, pois deixei a moto para revisão no mecânico. O dia estava bem frio, uma frente gelada estava sobre o Estado e na nossa praia, com aquele céu nublado acinzentado típico de inverno e temperatura em torno de 10 graus, o que me faria sentir mais dor, se viesse a sentir, o que não gostaria claro.
Fui tranquilo, estava como sempre adiantado no horário, chegando cerca de dez minutos antes. Entrei no consultório cumprimentando a secretária:
-Bom dia, tudo bem? Avisou a doutora para trazer a anestesia tripla?
-Ela já chegou - respondeu a secretária.
-Bom dia Seu Fernando, tudo bem? Já estou aqui preparadinha para o senhor não sofrer dor hoje! - respondeu-me com voz alegre, aparecendo na entrada da sua sala toda paramentada, de touca, máscara e demais itens de proteção. Pronta para a batalha final.
Caminhei para lá. Estava disposta, via-se pelos olhos brilhantes e espertos, demonstrando que teríamos uma sessão mais tranquila.
-Pode se sentar seu Fernando, por favor? Está tudo bem com senhor?
-Sim, mas a senhora sabe, né, cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. Ela riu assim como eu, gostosamene. Mas, no fundo, sempre ficamos instintivamente assim como o cachorro, pois o medo da dor é da natureza do ser humano, libera adrenalina e nos deixa alertas.
Ela tirou uma nova chapa de raio-x e disse estar tudo bem. Preparou os instrumentos, aplicou a anestesia e enquanto esperava a droga fazer efeito, falou:
-Hoje vou lhe dar uma dose de anestesia para elefante, Seu Fernando. Não vai sentir nada por um bom período, "tá" seu Fernando.
-Da outra vez foi para cachorro magro, né doutora - brinquei. Ela riu.
Recomeçou a sequência do tratamento, retirou a proteção provisória do dente, chegou às raízes, introduziu uma broca e perguntou-me:
-Dói, seu Fernando? Pelo tom da sua voz, deduzi que estava um pouco preocupada.
- Não, tudo bem. Respondi com se tivesse uma batata na boca, pois a anestesia fazia efeito, deixando o lado esquerdo da minha face quase todo paralisado.
Seguiu com o motorzinho, de barulhinho irritante e traumatizante, já com as brocas para a retirada final das raízes faltantes.
Então, talvez para descontrair, começou a contar-me a sua vida enquanto trabalhava. Era casada com engenheiro civil, como eu, morara em vários locais, no Maranhão, no Rio de Janeiro a maior parte do tempo, que adorou e ainda gosta. Seguiu falando e falando. Escutava-a interessado, pois a sua história parecia muito com a minha, em algumas situações. Foi interessante o seu relato.
-Estou contando a história da minha vida, hein, Seu Fernando!
- Grrpm - respondi, soltando um grunhido de confirmação com a minha voz abafada de boca torta.
-Não está doendo Seu Fernando, vejo por sua expressão que não - falou bem faceira e seguiu agitada no tratamento.
-Sou bem agitada Seu Fernando e na sexta passada estava baqueada, mas hoje estou bem e vai dar tudo certo.
Movimentava-se com destreza e rapidez pela sala, com gestos seguros, indo de um canto ao outro pegando alguma ferramenta ou material. Ao mesmo tempo, começou a cantarolar uma canção, que não consegui decifrar, mas em alguns momentos, entendi termos em inglês. Seu canto deixou-me mais relaxado, pois ia bem o tratamento por estar ela com esse espírito. Deitado calmamente na cadeira fechei os olhos, tentando decifrar a sua música.
-Estamos terminando Seu Fernando. Foi tudo muito bem, ótimo, não? E sem dor, não é mesmo? - falou tirando-me os apetrechos da boca bem amortecida.
-Sim doutora, foi tudo muito bem, obrigado. A senhora sabe que agora aposentado, tenho um blog de escrita? - com aquela voz de quem tem problema de dicção, sem ter controle do som que emitia.
-Que interessante!
-Sim e escrevi sobre a nossa odisseia da quinta-feira passada.
-Não Seu Fernando, é mesmo? O senhor não disse meu nome, disse?
-Não, nunca coloco nomes nos textos. Fique tranquila que ele está bem tranquilo.
-Mas não me colocou em situação desagradável, não é?
-Não, claro que não, pois estava bem cansada e eu topei seguirmos o tratamento, não foi culpa sua. Foi tudo consentido por mim!
-Ok, seu Fernando, vou lhe passar meu cartão onde tem meu celular para me mandar o texto. Estou curiosa!
-Mando sim e vou escrever a sequência de hoje, o "Gran Finale", que lhe mandarei também.
-Espero que tenha sido um "Gran Finale", né Seu Fernando!
Outra radiografia e "está tudo ótimo Seu Fernando". Deu-me anti-inflamatório que tomei na sala. Pediu que não mastigasse daquele lado da boca durante o resto do dia. Também, que a anestesia deveria atuar até o meio da tarde e caso doesse após o término do efeito, deveria tomar o analgésico receitado na fatídica sessão da quinta-feira anterior, repetido agora com nova receita.
-Aqui o meu cartão com o celular. Vou ler com calma hoje à noite com meu marido.
Levanto-me da cadeira sem tontura, de boca paralisada no seu lado direito, saio do consultório e entro no carro, adiciono o seu número enviando-lhe o texto. Volto para casa satisfeito.
Na hora do almoço, entro no watts e vejo inesperadamente a sua resposta:
-Adorei! Manda-me o outro texto da sessão de hoje, o "Gran Finale", estou curiosa.
A anestesia "elefântica" perdurou até o meio da tarde, perto das quinze horas e uma leve dor nasceu, obrigando-me a tomar o remédio prescrito. Talvez, a anestesia não fora para elefante, mas para cachorro grande. Foi um "Gran Finale" sim.
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