AS AVENTURAS DO SEU ZÉ TOREIRO UM PESCADOR NO RIO CAETÉ
AS AVENTURAS DO SEU ZÉ TOREIRO UM PESCADOR NO RIO CAETÉ
Chapter # 5
Autor Moyses Laredo
O seu Zé Toureiro era um homem de palavra, o que dizia se escrevia, era também, grande e forte, do alto dos seus 70 e uns anos, mas, de muito inigualável vigor nordestino, pai de um grande amigo meu. Conhecido pescador por todos na redondeza, possuía todo tipo de tralhas e equipamento, desde barco com motor, malhadeira, linha comprida, todo tipo de anzóis e muito mais. Tudo muito bem arrumado num espaço no quintal da sua casa, no bairro da “Cerâmica”, em Rio Branco/Acre. Segundo seu filho, ele fazia umas pescarias que matava qualquer um só no cansaço. O deslocamento até suas “bases” era a parte mais sofrível, não era pra qualquer um, andava-se mais do que se pescava, o cabra tinha que ser bruto para acompanhá-lo. Mas, ele também guardava um segredo de estado, nunca revelava pra ninguém onde pescava, suas pescarias eram fartas, não faltavam peixes em casa nesse dia. Ele sempre ia sozinho, levava as tralhas na cabeça, canoa, motor, barraca, isopor e tudo mais, fazia várias viagens do carro para o local da pescaria, se necessário, nunca dependeu de ninguém. Meu amigo disse que o acompanhou certa vez pra nunca mais.
Nesse dia, em casa, deitado em sua rede se embalando na varanda, contava suas prosas, eu, como sempre, bom de ouvidos, escutava tudo com muita atenção, certa vez, viu minha curiosidade e me convidou para acompanhá-lo numa delas, para ver se era prosa mesmo, até me espantei com o convite. É certo que em algumas que contou, duvidei pelos exageros, contudo, achei maravilhoso o convite, muito me honrou, já que nunca convidava ninguém. Combinei com o meu amigo, para que fôssemos juntos. Depois de tudo acertado, fui à casa do seu Zé bem cedinho, coisa de 4 pra 5 horas da manhã como havia pedido. Depois de um café reforçado, preparado por sua esposa, uma libanesa apaixonada pelo filho, saímos na sua velha caminhonete bandeirante abarrotada com as tralhas, seguimos na estrada de Sena Madureira, Br-364, entramos num ramal já depois da cidade de Sena Madureira, seguimos o ramal a dentro, a estradinha esburacada acompanhava as curvas do rio Caeté, cruzamos o igarapé do Xiburema até pararmos na porteira de uma fazenda, de lá não podíamos seguir com a sua velha companheira Toyota, embora fosse uma 4x4, havia cercas de arames farpados, pequenos riachos, barrancos e outros obstáculos no caminho, que impediam o deslocamento no veículo, então, arrisquei – E agora seu Zé como vai ser? – Sem me responder nada, deu início a retirada das “coisas” que usaríamos, nem tudo que trazia na carroceria servia, mas, já ficavam lá para qualquer eventualidade, em seguida arrumou ao lado o que cada um levaria, a canoa e o motor de popa com um pequeno Evinrude de 15HP estava entre elas, fiquei a pensar se seríamos nós a carregar aquilo, mas não houve tempo pra concluir o pensamento, seu Zé emborcou a pequena canoa de alumínio na cabeça, passou uma braçadeira no pequeno motor, jogou no ombro feito uma sacola e com a outra mão, levantou o jamaxi com a mochila dentro, apoiou no outro ombro e se mandou na frente de todos, com passadas firmes e pisadas fortes. Conosco ficaram as panelas, varas, linhas, lonas, geleira (com gelo) e as nossas mochilas. Tocamos atrás do seu Zé, passaram-se coisa de 3 ou 4 horas a bom caminhar pelos varadouros que só ele conhecia, haja a subir e descer morros, me voltou à mente, aquela caminhada que fiz a alguns anos atrás quando seguia o ti Néri à noite, para uma festa no Cambixe. E tem mais, ele pedia sempre que ninguém contasse para outras pessoas do seu local preferido de pesca. O jeito era seguir a pé mesmo, até o ponto que o seu Zé achasse bom para pescar. Já na beirada do rio Caeté um pequeno afluente do rio Purus, o primeiro movimento era o de reconhecimento do local, ele analisava tudo em volta, ninguém descarregava nada ainda, se notasse algum rastro de pessoas por ali, levantava o acampamento e se tocava para mais longe ainda. Uma vez conferido o local, e tudo em ordem com a vizinhança, a fome já apertando, mas, se deveria começar primeiro pela armação das barracas, coisa simples, fincava-se dois grossos paus no chão mole de tabatinga, afastados um do outro cerca de 3 metros, estendia uma corda no topo, amarrava bem esticadinha depois lançava a lona por cima, prendia os quatro cantos com cordas, passada nos ilhós, esticava bem, em seguida prendia em pequenas estacas cravadas estrategicamente no chão e pronto!... estava armada a barraca de lona, nada de chão ou paredes, perguntei – “Mas seu Zé, e como o sr. vai passar a noite debaixo dessa lona? – “Ora minino, eu ato a minha rede, nos paus de esteio que enterrei, que são fortes o suficiente pra me aguentar”. A rede do seu Zé, tinha mosquiteiro!...isso ele não contou pra gente, detalhe essencial naquele local ermo, quando combinamos a pescaria, disse-me apenas pra trazer rede. Sem jeito, fizemos como ele, armamos nossa barraca. Depois destampamos umas panelas para ver a “bóia” que sua patroa havia preparado para todos nós, sabendo ela que, não daria tempo para pescar nada nesta manhã. Depois do breve almoço, uns quitutes da comida árabe, saímos para estender a malhadeira e lançar algumas iscas n’água para “sentir” o local, o tempo passou rápido, e logo anoitecera, conseguimos umas tilápias bem crescidinhas, com as quais me atrevi a fazer uma caldeirada, tinha me precavido, levei os temperos, o seu Zé apreciou muito, chamou-a de “sopa de tilápia”.
A falta do mosqueteiro ainda era um problema e dos sérios a ser resolvido, os carapanãs de lá atacavam como os camicases da segunda guerra mundial, desciam em formação em direção da rede, ouviam-se os zunidos caraterísticos, só paravam quando o ferrão estava todinho atolado no lombo da vítima. Não adiantava se enrolar na coberta, não sei como, mas eles descobriam a coincidência das tramas das malhas da rede, sobreposta com as tramas das malhas da coberta, e por ali enfiavam sem dó seu enorme probóscide (tromba), o grito de duas vogais das vítimas, vinha em seguida. Descobri uma técnica que irritava muito eles, era assim: Quando sentia o início da picada, aquela pequena agulhada inicial, me mexia um pouco no lugar e assim, as malhas da rede e da coberta desalinhavam, e sua tromba saía do prumo, se entortava desviando do alvo, e atrapalhava seu intento, ai, ele se mandava puto sem ferrar, com isso, consegui me livrar de muitas ferroadas até conseguir dormir, depois, não lembro de mais nada. No dia seguinte só contabilizava as marquinhas avermelhadas nos braços e canelas. Seu Zé já de pé com o café no bule, pão e manteiga sobre a mesinha improvisada, chamando a gente aos gritos, sua pressa era pra ter ajuda com as suas tralhas, a gente engoliu o café rapidamente, deu com a mão nos apetrechos e nos mandamos no encalço dele, que sempre com suas passadas largas se adiantava da gente, iguais as passadas do “ti Néri” do Cambixe, quando fui com ele numa “Festa Casamenteira” (do livro Meu Pé de Moleque- autor Moyses Laredo), já na beirada, no ponto da pescaria, era cada um por si. Seu Zé já com sua isca e varas preparadas, porque tomou café muito cedo e se pôs a prepará-las, enquanto que nós dois, estávamos ainda dormindo depois daquela noite medonha de ataques dos vampiros carapanãs famintos. Ficamos para trás, enquanto isso o seu Zé já enchia o seu jamaxi, (sacola de cipó usada pelos seringueiros do Acre, que o levam nas costas feito mochila) com peixes variados, tinham muitas espécies como: tilápias, mandis, jundiás, pintados, capararis e vários outros peixes lisos menores todos de couro. Dava gosto de ver a fartura desse rio, não se parece com os rios do Amazonas, porém, é o que se tem por lá, e chega a ser uma dádiva para os ribeirinhos que usam esses estoques de peixe para suas sobrevivências. O dia foi curto para tanta agitação, numa hora se recolhia os peixes das malhadeiras, para tal, tinha que se usar a canoa, na outra, corria-se para as varas que ficadas no barranco, se encurvavam com a puxada forte dos peixes. O seu Zé, destemido e profundo conhecedor da região, entrava n’água, sempre que necessário, para desengatar o anzol preso nos entulhos do rio.
Tempos depois, em 2016, houve uma seca em todo o Estado do Acre, o Rio Caeté, situado na divisa entre os municípios de Sena Madureira e Manoel Urbano, teve uma queda significativa em seu volume de água. Cenas gravadas nos jornais passados da época, mostraram a quantidade de peixes que boiaram, alguns deles já mortos, devido ao baixo nível das águas do afluente e a consequente falta de oxigenação. Os rios mais próximos, como o Iaco e o Macauã, que banham Sena Madureira, também foram afetados pela crise hídrica que se instalou no Acre nesse fatídico ano.
Mas, neste ano de 2000, ainda bem antes da tragédia da seca, havia fartura nos rios daquelas bandas, nossa pescaria prometia ser de muita abundância. À tarde, seu Zé nos convidou para irmos mais acima, onde ele tinha fisgado, em outra pescaria, um enorme caparari, dizem por lá que o macho alcança até 180 cm de longitude e um peso máximo de 86 kg, achei um pouco exagerado, mas fui pesquisar e vi que estava nas estatísticas. O peixe tem a cabeça mais larga que as outras espécies de Platystoma (peixe de rios). Sua característica mais importante são os múltiplos pontos pretos desenhados em sua pele que é acinzentada no dorso e esbranquiçada no ventre, por lá, é também conhecido como “pintado”. Fomos nessa onda de buscar o maior. Ao estilo do seu Zé, percorremos umas 2 horas de voadeira até as cabeceiras do igarapé “Espera Aí” (está assim mesmo, grafado no mapa) então, foi ali que a mágica aconteceu, o seu Zé usou uma garrafa Pet vazia de 2 litros como boia, amarrou a linha com anzol nº 4/0 (dos grossos) cravou um grande pedaço de mandi e lançou não muito longe a isca, ainda estava afundando quando a boia começou a se mover, depois a correr freneticamente contra a correnteza, com bastante força, me lembrou o filme “Tubarão”, onde o bicho arrastava aquelas imensas boias amarela, no nosso caso, era certeza de que tinha peixe na linha e era dos grandes, pegou assim mesmo, tão rápido, parecia que os peixes dali não viam comida há muito tempo. Seu Zé deixou mais um pouco, porque tem peixes como a Piraíba, Pirarara que possuem placas ósseas na boca, o anzol só entra se for nos cantinho, se puxar antes escapa não consegue furar a placa e se perde o peixe, dito e feito, a puxada foi forte, o peixe reagiu imediatamente e começou a luta, que durou pelo menos uma hora e meia, até que aquele enorme peixe se cansasse e se entregasse de barriga pra cima com seu dorso branco, lindo peixe, acho que pesava pelo menos uns 40 kg, ele sozinho preenchia o nosso isopor. A tarde transcorreu desse jeito, a bom cada qual, pegar o seu “monstro”, já chegando a noitinha, a fome começou a apertar, tivemos que sair em direção ao nosso acampamento antes que escurecesse, para fazer alguma comida pro jantar, coisa rápida, tinha arroz pronto, só precisava jogar os peixes na trempe do braseiro já aceso, esperar assar e tacar o dente, o diacho é que só tinha peixe de couro, recorri as sobras da “sopa de tilápia” como o seu Zé denominou, juntei o arroz e a farinha, fiz a festa ao meu estilo. Depois de ver os peixes que pegamos, bateu uma preocupação de como seria para levar esses “bichos” enormes nas costas pelos varadouros até a caminhonete estacionada lá na porteira, coisa de uns 8 km, ali deveria ter pelo menos, mais de 120 kg de peixes já limpos, imaginei a luta do seu Zé quando vinha sozinho, ele contou que fazia várias viagens até carregar tudo para o carro. Foi aí que me ocorreu a grande ideia, levar tudo de barco pelo rio abaixo, inclusive as tralhas que troucemos, se navegaria até um determinado trecho, aonde o rio faz uma curva fechada e a estrada passa margeando o rio, eu tinha visto esse detalhe em nossa vinda, todos aprovaram a ideia. O seu Zé voltaria sozinho e pegaria a picape e nos encontraria no ponto combinado rio abaixo, poupou-nos de carregar aquelas tralhas pesadas e mais os peixes que pescamos, grande ideia, seu Zé aprovou, achou bom demais. Assim foi feito, que alívio para todos, ainda fez o seu Zé achar outro ponto para deixar a picape. Esta foi uma pescaria nas águas do rio Caeté, depois, nunca mais tive a oportunidade de voltar por lá, seu Zé falecera em 2003, deixando o seu legado para o filho, que não apreciava seu estilo de pescaria, mas, para resguardar sua memória, nunca o seu lugar preferido fora revelado a ninguém, só ele é que podia pescar lá, grande seu Zé.