Fogo e fé

Olha só aquele edifício de ripas de madeira amontoadas perto da cerca de divisa com o vizinho, penso comigo numa manhã de domingo que prometia ainda dar um belo sol. Ainda estão lá, depois de tanto tempo, ainda estão lá, murmuro para mim mesmo numa espécie de confissão, num reconhecimento das bodas de inutilidade completadas por aqueles sarrafos ajuntados no meu quintal. Na verdade não eram só ripas: eram vistas, meias-canas, assoalhos, janelas, portas, caibros, até uma escada já meio bamba, tudo sobras da reforma na velha casinha de meus pais. Casinha que ficou anos sem boa pintura externa, mas que nos abrigou a todos com segurança e da qual todos nós, pais e filhos, teremos boas recordações. As peças usadas nas paredes e assoalhos, apesar de mal acabadas, eram de ótima qualidade, tanto que boa parte do assoalho da nova casa de alvenaria foi feita com as tábuas do antigo assoalho. Lixado e envernizado ficou um espetáculo! Bom, mas as sobras, todas aquelas sobras que guardara para algum uso futuro (sabe como é, quem sabe seriam úteis para algum conserto, para fazer um pequeno banquinho, para... sei lá, a gente sempre precisa de um pedaço de madeira, não é?), “ainda” continuavam lá pegando chuva e sol, abrigando insetos de toda sorte e apodrecendo lentamente. Droga! Nunca sobra tempo pra fazer alguma carpintaria, penso, continuando minha reflexão matinal, algum dia desses ainda vou fazer um puxadinho com esse madeiral todo; só não sei quando. Quem sabe usaria mais as ferramentas todas, compradas justamente para essas raras ocasiões.

Maldito apego a coisas materiais! A grande verdade é que aquele monte de celulose só servia como ponto de encontro para cupins que em seguida vinham visitar o forro de minha casa...

Repentinamente um lampejo desafiador: será que eu seria capaz de me livrar de tudo aquilo? Não, é melhor não, penso. Tem tanta canela boa que ainda pode ser aproveitada. E aqueles pedaços de piso?! Com certeza ainda vão dar um belo banquinho de quintal. É melhor deixar como está, concluo. Mas algo dentro de mim continuava sem paz naquela manhã. Então resolvo: vou botar fogo em tudo, tudinho! É oito ou oitenta! Nada de continuar me apegando a coisas velhas!

Interrompendo os afazeres programados para aquela manhã, me boto a serviço. Umas folhas velhas de papel, uns fósforos, um local razoavelmente no meio do quintal (distante de outras coisas... queimáveis), um pequeno foguinho numas meias-canas e, daqui a pouco, como não parava de acrescentar lenhas, um fogaréu de chamas altas que até me fizeram temer que se alastrasse. Assim, pouco a pouco, eu que tenho lá certas dificuldades de me desfazer das coisas, fui me sentindo orgulhoso de mim mesmo. Minha esposa, da janela da cozinha, me mandou um beijinho. Cheguei a pensar que foi por ela perceber a vitória por mim conquistada, mas à bem da verdade é que ela deve mesmo é ter ficado feliz por ver o quintal finalmente mais arejado.

Seja como for, lá estavam queimando todas aquelas... deixem-me pensar... aquelas...

Lembranças...

Possibilidades...

Passado e futuro pras cinzas! Isso é o que eram.

O fogo é lindo. Você já notou? Na verdade eu já havia me livrado, como fogo também, de uma parte daquele entulho e havia, então, constatado pela primeira vez toda a beleza oculta sob as chamas.

Você já reparou no produto do fogo, no resto, no que sobra, no que as labaredas nos deixam? Trezentos quilos de madeira não passam de algumas gramas ao final da combustão. Por isso as cinzas têm tanto significado no mundo, na literatura. Elas representam o quase nada que sobra de tudo aquilo que pode ser valioso para nós!

Eu, ali sentado à beira do calor, o rosto avermelhado e quente, um quentinho até aconchegante para um final de inverno, com os olhos fixos nos estalos de fogo sobre a madeira, não pude deixar de pensar no que podia acontecer ao meu próprio e humilde lar, ele mesmo construído em boa parte com madeira. O que é uma árvore seca perto das chamas? E mesmo o barro ou até o aço? Tudo, tudo derrete e queima. Quantas pessoas morrem em incêndios! Quantas carbonizadas em acidentes de automóvel! Quantos animais encurralados em queimadas, muitas vezes até criminosas!

Como é morrer queimado?

Certamente é sentir que aquilo que é mais precioso para a maioria das pessoas (o próprio corpo, a própria carne) arde irremediavelmente de uma dor indescritível e se tornará logo pó outra vez. Poeira que jogada ao vento some em milhares de minúsculos pontinhos que se misturam com o ar...

Você já olhou fundo no espelho de uma chama, de uma lareira a consumir pedaços de pau, de uma vela a derreter a cera?

***

Hoje é dia dos pais: assim introduziria eu um culto de domingo em minha querida igreja. E quero neste momento falar do “meu” pai, continuaria. Meu pai é um exemplo de vida, um convite à reflexão.

Reflexão? Explico.

Vejam-no hoje, ali no fundo, com seis décadas e meia de vida. Vejam-no hoje, encadeirado, vejam-no marcado pelo tempo, vejam seus finíssimos cabelos brancos (os que restaram...). Vejam seus trêmulos gestos atrapalhados pelo Parkinson, cruel e covarde inimigo de uma idade em que se deveria poder correr igual criança. Vejam o queixo que se abre e fecha indiferente a qualquer controle, a boca que às vezes mal pode segurar a dentadura (no interior, adolescentes de quatorze ou quinze anos ganhavam chapas – próteses dentárias – de presente de seus pais, para completar as lacunas em seus sorrisos!).

O que é viver feliz? Aliás, o que é felicidade?

Lembro-me bem de uma foto 3 x 4 de meu pai. Preta e branco, ela mostrava um rosto emagrecido pela depressão. Acho que não esquecerei jamais a expressão de alguém que chegou a não querer mais viver, a querer tirar a vida dos filhos e depois a sua própria. O motivo? Dinheiro! Medo de não poder sustentar a família... Acho que dinheiro é só o motivo superficial. Lá no fundo a causa é amor. Querer dar o melhor aos filhos queridos que se quer proteger e não poder ter a certeza de conseguir, isso deve ser dolorido quando não se tem muito estudo (no interior, há cinquenta anos atrás, mal se concluía a quarta série...).

Tudo isso cravou-lhe na perna uma úlcera, contra a qual lutou por anos e só agora, agora que pôde sentar e descansar, fechou.

O que é felicidade? É meu pai feliz?

Dinheiro nunca teve muito. Não por culpa dele mesmo. No capitalismo não há quem ganhe pouco, há que pague pouco: é muito diferente!

O que é viver com doenças que rondam como fantasmas, com úlceras sanguessugas, com a lembrança de conflitos familiares, com uma luz no fim do túnel que parece tanto mais se afastar quanto mais perto dela se tenta chegar?

Eu respondo.

Para muitos é viver, é apenas sobreviver.

Para mim é sobre-viver, ou seja, viver “acima” do que pensa o mundo!

Meu pai nunca foi fanfarrão, não bebeu, não fumou, não foi de ficar vendo futebol com os colegas e não teve lá muitos amigos. Até compreendo. Para algumas humildes famílias germânicas, visitas são só para dias especiais...

E mesmo assim, ria às vezes do nada. Não era um riso feito, forçado. Era aquele riso teimoso, que faz doer a barriga. Aquele riso frouxo e gostoso. Aquele que retorna a cada vez que nos lembramos da causa. Dias atrás meu pai comentou com meu sogro que tinha caído neve em várias cidades de Santa Catarina. Meu sogro respondeu: - Ah, tá caindo neve, tá caindo “tudo”... Pronto, lá desatou meu pai a rir sem parar!

Apesar disso tudo, foi um exemplo, talvez um dos maiores, de humildade, de coração generoso e de cuidado com os outros. Todos diziam dele que era um excelente enfermeiro.

Bom, não sei que tipo de frustrações guarda “meu velho”. Sua mão era difícil. A família toda falava disso. No fim da vida ela teve arteriosclerose, o que lhe tirou a nitidez das coisas. Certamente a vida difícil no interior, na lavoura, com uma mãe complicada, deixou marcas nele. Por isso o entendo. Cada árvore deve ser medida pela quantidade de seiva e de sol que recebe da natureza!

Talvez, labutando em um hospital por anos a fio, meu pai tenha se apegado à solução errada: medicou-se sem parar. Teimoso ele sempre foi, nunca nos ouviu sobre soluções alternativas. Neste mundo onde a psiquiatria perdeu a alma, a química foi uma de suas muletas.

Mas não foi a única!

Em 1968 minha mãe se converteu ao cristianismo e levou junto o resto do núcleo familiar.

Por isso vejam meu pai. Talvez ver pessoas sendo lentamente degeneradas por doenças incuráveis possa deprimir. Bom, deprime a mim também. Gostaria de ver meu pai mais saudável.

Mas, vejam meu pai.

Vejam porque eu o vejo.

Eu o vejo solitário, mas tranquilo.

Eu o vejo folheando o Livro dos Livros enquanto outros cruzam os braços.

Eu o vejo... eu o vejo tendo esperança!

Feliz Dia dos Pais!

***

Este culto de domingo nunca existiu e provavelmente nunca existirá. Mas certamente os irmãos em Cristo estariam ao final todos silenciosos e reflexivos. Estariam alguns com os olhos marejados a pensar em seus próprios pais, em sua própria existência, em sua própria condição. Estariam a pensar que a sanidade, a saúde, o sucesso, a felicidade, enfim, tudo, tudo é vaidade.

Para muitos filhos, seus pais são heróis pelas conquistas, vitórias, sucesso. Mas... o que é sucesso? O que é ser feliz? É a felicidade indício de sucesso? De que tipo de felicidade estamos falando? Não foi o meu pai um homem de sucesso? Para mim, meu pai é herói por teimar em ficar vivo, por lutar contra o que a vida lhe trouxe, por se apegar à sua fé.

Para mim ele é agora, mais do que nunca, agora cada vez mais fraco, ele é a mais forte lembrança e aviso.

Aviso de que toda madeira, boa canela ou fraco pinus, queimará e virará cinzas. É um lembrete de que todos apodreceremos sob o efeito do tempo. De que todos somos pó e ao pó retornaremos. E o sucesso ou fracasso que por ventura tivermos tido não se pode medir pela simples felicidade superficial, pela fartura, pelas vitórias alcançadas com a derrota dos outros, pela fortuna acumulada, por palacetes construídos, enfim, não se pode medir pelo mundo.

O retrato 3 x 4 do magro homem em preto e branco é lembrança da nossa efemeridade. Olhar para ela é como olhar para o espelho das chamas da lareira, do fio amarelo que consome o pavio, dos tufos ardentes que enegrecem a madeira. Ao final, sobrará apenas fuligem que lançada ao vento desaparece, esmaece.

É triste esta palavra?

Talvez não!

Você já notou o que acontece com florestas que foram queimadas? Pois eu lhe digo que a queimada é necessária para muitas matas espalhadas mundo afora. Elas são um processo doloroso da mãe natureza. A mata, depois do fogo, ressurge ainda com mais força! A cinza alimenta o chão e faz brotar novo broto.

Cada pedaço de pau que queimei é como o corpo frágil de meu velho pai, vale dizer, como o meu e o seu débil corpo: queimarão, tornar-se-ão pó e cinzas.

Ressurgirão em broto novo e verde, vistoso e forte?

Olhe-se no espelho das chamas e responda!

É... o fogo é como a fé, nos lembra do sentido máximo de nossa existência...

Agosto de 2010