Longa fermentação
Aos 8 anos, fui morar em outro bairro. Dos 8 aos 11, fiz uma espécie de estágio na região. Fui, com meus pais, conhecendo e sendo conhecido naquele lugar. Com 11 anos, já podia transitar sozinho por entre as ruas.
Enquanto achava que transitava feito os adultos, de forma autônoma e “posuda”, ao final do dia, meus pais recebiam o relatório de minha odisseia por parte dos diversos comerciantes do bairro.
Um dos passeios preferidos era comprar na padaria. Não digo que tenho tara por pães. Glutão que sou, nunca tive, preferindo sempre os variados pratos que se servem no almoço. Naquele local, o divertimento era conversar com o dono do estabelecimento, enquanto o via revirar as massas.
Aquele senhor, ao passo que dominava a massa, deixava a prosa correr solta. Em mais de uma ocasião, ele dizia que eu levava para casa o legítimo pão francês. Francês, não pelo tipo, mas por, segundo ele, ser originário da França. Ficava imaginando como o pão saía toda manhã daquele país, que havia nos derrotado dois anos antes, e vinha para cá. Imaginava que feitos assim, ganhar a Copa e fornecer o pão, só podiam ser coisas de países desenvolvidos.
O amigo-padeiro dizia fazer os pães com a mesma massa madre que um antepassado, francês, trouxe a bordo do navio Mohely, em 1876. Segundo contava, aquela farinha foi tornada fermento na Comuna de Paris, quando o seu bisavô-anarquista a fizera pela primeira vez para alimentar os communards. Aliás, essa massa teria garantido a vida de seu bisavô: no momento em que sua cozinha foi invadida e fuzilada pelas tropas de Thiers, fora deixado vivo por estar fazendo pão. Afinal, na prisão, era necessário ter pão, para que tivesse a quem torturar.
O bisavô-anarquista desse meu amigo padeiro ficou preso até o fim de 1875, quando sua bisavó, a moça que levava trigo todas as semanas, rompendo com o seu cativeiro, tomou coragem para dar ao padeiro novas roupas e uma maneira de fazer pão do outro lado do Atlântico. De Bordeaux, sob outro nome, trazendo o pré-fermento da Comuna e um punhado de trigo para alimentá-lo, chegaram em Vitória em 24 de fevereiro de 1876.
Tão logo aportaram aqui, foram para o Rio de Janeiro. Lá, tiveram dois filhos e abriram uma padaria, que servia aos mesmos propósitos daquele fermento que alimentou a Comuna, que sobreviveu à prisão e também à viagem ao exílio. Durante o dia, de portas abertas, o fermento crescia o pão. À noite e de madrugada, o pão era dividido entre os camaradas.
Foi só após 1918 que o bisavô daquele meu amigo padeiro resolvera mudar-se da capital do país. Na ocasião, só não fora preso porque o policial procurava um jovem padeiro que alimentava a insurreição anarquista que ocorrera. Na recusa do dono da padaria de entregar seu funcionário, o agente apenas ameaçara com uma gravata aquele senhor de 61 anos, que desde que chegou ao Brasil fazia os pães sozinho.
Após o episódio, o bisavô anarquista resolvera voltar àquele porto que lhe soou pacato e inóspito naquela manhã do dia 24 de fevereiro de 1876. Seu único filho que restava, viera 5 anos antes, em 1913, e vivia dignamente como funcionário da Estação Ferroviária de Vitória. Aqui, num ambiente provinciano, o velho francês voltou a sentir-se livre para usar o nome e sobrenome de batismo, digno de uma lápide e de uma placa que o filho colocou na fachada da nova padaria.
Naquela época em que ouvi essa história do bisneto do anarquista, no início dos anos 2000, o país sentia as consequências da abertura econômica. Curiosamente, se mais de um século antes o bisavô fugira da capital francesa, agora, era o capital de lá que alcançara seus descendentes.
A padaria do meu amigo padeiro, chamada de A Francesinha em homenagem a mãe que lhe ensinara o ofício de padeiro, gostava de trabalhar com trigo pacientemente testado e selecionado, de qualidade, além daquela velha massa madre. Por isso, de forma oficiosa, propagandeava a grife “desde 1876” em seus sacos de pães.
Se aquele fermento resistira a tantos embates abertos, a luta agora se dava de forma mais subjetiva. Há exatos 3 km da padaria do meu amigo, um grupo de capital francês abrira um grande mercado que trabalhava no atacado. Nele, se podiam adquirir não só farinha por menor preço – e de menor qualidade, diga-se de passagem -, mas também diversificadas misturas prontas para o preparo do pão. Este novo produto, também chamado de mix pré-pronto, prometia redução do desperdício, praticidade e, sobretudo, padronização.
Pari passu, surge, naquele bairro em que eu morava, uma nova padaria. Diferente do ritmo mais cadenciado da padaria do meu amigo, a Pão Progresso prometia fornadas de pães de hora em hora e a preços mais baixos. Era uma padaria mais adaptada aos tempos que chegavam: de demissões, de salários baixos e de pães de manhã, no almoço e na janta.
Sem acompanhar os novos tempos, não tardou para que a padaria A Francesinha começasse a perder clientes. O meu amigo se recusou a mudar a sua forma de fazer pão. Não admitia outro fermento, seco e econômico que fosse, senão aquele que fora gestado na Comuna de Paris. Não admitia resolver os problemas imediatos com soluções de pouco tempo de fermentação. Assim, a Padaria Pão Progresso, já no início dos anos 2000, levou os clientes que foram fermentados por décadas pela família do meu amigo.
Duas décadas depois, na quarentena por causa da corona vírus, me proponho a fazer duas coisas. Descontente com os pães de casca grossa que dominam o mercado e que prejudicam a digestão, tento fazer um fermento natural para preparar um pão mais saudável e de longa fermentação. Ao mesmo tempo, estudando parte da história política da França, através de uma obra de Karl Marx, procuro informações sobre meu bisavô, francês, que emigrou para o Brasil no final do século XIX.
Por isso, me lembrei dessa história que se passou em minha infância. Saudosamente, procurei informações sobre aquele meu amigo padeiro. Depois de uma busca na internet, descubro que ele não existe mais, senão enquanto nome do estabelecimento que sua filha inaugurou no ano passado, no mesmo bairro operário em que moramos.
Ao entrar em contato com ela, descubro que o empreendimento não se trata de uma padaria comum, mas de um novo conceito, agora chamado de “artesanal”. Porém, essa filha do meu amigo padeiro me garantiu se tratar do mesmo fermento, que seu tataravô gestou na Comuna de Paris, que alimentou a insurreição de 1918 no Rio de Janeiro, que veio de trem para o seu bisavô em Vitória, que alimentou os filhos da sua avó e que foi a desgraça de seu pai em um tempo de busca de soluções rápidas e imediatas. Agora, ela, tataraneta, promete fazer uma revolução no trabalho com o pão, reintroduzindo esse mesmo fermento no gosto popular.
Voltando a história da França. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx analisa o golpe de Luís Bonaparte e a sua decorrente autoproclamação como imperador em 1852, à luz da comparação com o golpe dado por seu tio, Napoleão Bonaparte, em 1804. Na ocasião, o velho barbudo reconhece que, primeiro, a história acontece como tragédia, depois, como farsa. Não viveu tanto tempo para descobrir que o desenrolar do capitalismo instituiria outra tendência também: as coisas terminam, primeiro, por uma farsa, e, depois, retornam porque deram em tragédia.
Acolhamos o ressurgimento daqueles que sumiram por uma farsa: os padeiros artesanais da periferia. Depois da tragédia, é necessário que retornemos à produção do que exige longa fermentação e que revoluciona desde baixo.