Crônicas de uma Páscoa matemática
Meio zureta ainda, ouço em algum apartamento vizinho um buliçoso vozerio.
Manhã de Páscoa esquisita, provavelmente a mais estranha de minha curta vida sobre a face da Terra. Saindo do quarto para lavar meu rosto, e crianças faceiras tamborilam com seus pés o chão do prédio. De repente, pais felizes por terem cumprido sua missão compartilham um com o outro em um tom que se esquece dos preguiçosos do edifício: Ele achou, ele achou! E as vozes se calam: os filhos com bocas cheias de chocolate, os pais com as consciências tranquilas por verem suas proles satisfeitas...
Disney entreteve e ao mesmo tempo ensinou em seu belo “Donald no país da matemágica”, e os números ganham outro sentido: saem dos apavorantes cálculos e se transformam em flores, música...
É a matemática que fala do cheio e do vazio; também do longo e do curto... e nos mostra os contrastes desse tempo.
O coronavírus parece uma bola de futebol, circunferência perfeita, na qual cravaram, pelos caules, funéreas flores, resultando em algo que quase lembra uma luz psicodélica de discoteca - os lucrativos Ovos de Páscoa, deliciosas elipses, não deixam por menos: brilham nas estantes dos mercados em tamanhos, cores (e preços) para todos os gostos;
A mortífera e redonda coroa do vírus, que pode zerar uma existência, nos assombra e talvez ofusque a única coroa de espinhos que pode fazer alguém se transformar em “um” espiritual;
A ausência de dignidade dos enterros em valas coletivas contrasta com a gloriosa tumba solitária;
Apenas um túmulo vazio – e bilhões crescentes de almas que podem ficar cheias;
Uma curta vida de 33 anos – e a longa eternidade disponível a todos;
E os contrastes se estendem aos sentimentos...
O que entristece são os orgulhosos falsos mestres da contemporaneidade, sepulcros caiados, que esqueceram a mensagem do mestre dos mestres, o mestre autêntico, que em seu desespero rogou ao pai que, se pudesse, afastasse o cálice, mas que se submeteu humildemente à vontade do Pai – o que alegra é ver modestos aprendizes e discípulos vestidos de branco também arriscarem suas vidas com sua brandura e cuidado, enfermeiros para os enfermos, alguns dos quais também obedientes à voz desse Pai;
“Está consumado” proferiu a voz do Deus-moribundo, do Deus que se esvaziou e se encheu de humanidade, do Deus-Filho findando sua encarnação pregado num madeiro, seu flanco esvaziado por uma lâmina, seu sangue marcando seu corpo como veios de afluentes marcam a terra – e precisamos nos perguntar se a cada Páscoa o sangue do cordeiro borrará mais nossas consciências do que o cacau borra as bocas dos pequeninos; se a cada Páscoa teremos os corações cheios de alegria mais do que nossos ventres cheios de doçuras; se a cada Páscoa iniciaremos uma vida verdadeira; se a cada Páscoa nos esvaziaremos de nós mesmos para deixar o Deus-moribundo preencher nosso vazio interior; se a cada Páscoa poderemos repetir, com os olhos marejados de alegria: - Sim, Pai, está consumado em mim também!
Que, como pais e mães, possamos ver um dia nossos filhos gritarem de alegria: - Achei, achei... Achei o salvador!
Abençoada Páscoa!
12.04.2020