O mito do rebanho

Dizem que nossos sonhos são misturas fantasiosas das situações que vivenciamos na realidade do dia a dia. Fantasiosas, mas reveladoras!

Sou obrigado a concordar...

***

Noites atrás sonhei com meu pai.

Rememorar detalhes de nossos sonhos é difícil, mas vamos lá.

Estávamos, possivelmente apenas eu e ele, passeando no meu Escort 93. Por onde? Não sei, mas parecia ser pelas redondezas de Lontras ou Pouso Redondo. Em Lontras mora uma prima de meu pai que ele ainda quer visitar algum dia. O Parkinson que o consome lentamente torna este desejo diferente, especial. Devia ser por Lontras! Repentinamente, como uma criança que começa a dar os primeiros passos e que se desprende das mãos dos pais, meu pai some da minha vista. Desespero-me, sua doença não lhe permitiria vagar por aí. As lembranças já encontram lacunas, branco, mas, nesta tentativa de reconstrução, acho que a quimera remeteu-me a um rally, uma correria agonizante atrás do paradeiro de meu velho, com direito a salto em rampa e tudo mais.

Bruscamente o cenário muda, é idílico, o vale do Itajaí o é. Não sei por quais cercanias andei, mas sei o que representam: minha vinda para esta terra de vinhos que já não é mais terra de vinhos, a saída do último rebento da barra da saia da mãe, um abandono à própria sorte daqueles que mais lutaram e se anularam por mim...

Finalmente, e aqui a lembrança se torna vívida, num recinto que misturava bar com posto de gasolina, alivio-me ao encontrá-lo deitado ao chão. Alguns desconhecidos zelosos tomavam conta dele, que já definhava. Ele assumia a forma de um quase anão, um duende decrépito que, sôfrego, ansiava o meu cuidado. Quando o tomo em meus braços, dizendo palavras carinhosas tal qual um pai que reencontra o filho perdido, sua face se transforma, suas feridas começam milagrosamente a sarar, sua pele se torna lisa novamente... Abraçamo-nos. Ele se sente novamente reconfortado.

Então acordo.

Tristonho, na escuridão, com os olhos tentando adivinhar as horas pelo nível de luminosidade que penetrava o quarto, minha esposa em sono profundo ao lado, permaneço não sei quanto tempo assim, com os olhos no teto e a cabeça longe, longe...

Subitamente, fazendo um esboço mental de alguma crônica que versasse sobre este sonho, me vem um lampejo. Dionísio, Baco? Não, eu sequer sei distinguir um vinho que não passa de suco de uva de um vinho fino, de uma safra qualquer do início do século passado. Revelação divina talvez.

Presenteia-me o momento com uma resposta a perguntas que já me inquietam há tempos. Porque sofremos? Porque pais têm de ver filhos partirem? Porque temos de adoecer, às vezes de forma terminal? Como confortar um ateu colocado diante de qualquer destas indagações?

A imagem que me invade é a de um rebanho.

Ora, como nunca atinei para isso?, penso, meneando a cabeça inconformado de nunca ter feito tal ligação antes, lembrando das inúmeras referências bíblicas a respeito das quais o Salmo 23 talvez seja uma das mais belas: “O Senhor é meu pastor e nada me faltará...”

O gado é fácil presa diante do senhor, do proprietário, que no tempo devido dele fará uso como bem lhe aprouver.

Ovelhas são animais dóceis, indefesos, nada podem fazer contra lobos famintos, não protestam, são passivas.

Porque há lobos e porque estes têm de se alimentar de cordeiros ou novilhas?

É simples, o segredo está nas dores do rebanho...

É necessário que sintamos dor quando nossos corpos são violados, seja por uma salvadora picada de vacina ou pelo corte de uma navalha; que fiquemos perturbados pela gratuidade com a qual se mata hoje em dia nas favelas, nas chacinas; assombrados com as forças da natureza que ceifam vidas e destroem prédios de concreto armado como se fossem peças de dominó enfileiradas em pé; é absolutamente necessário que sejamos atingidos no âmago do ser quando alguém próximo parte; que nos sintamos angustiados, angustiados com a finitude!

Como desorientados cordeiros devemos ficar perplexos com as questões que a ciência não consegue dar conta ou com os mistérios do mundo.

Como rebanho, precisamos sofrer as marcas do sofrimento, com ferro e fogo!

Por quê?

É simples: porque o ferro em brasa nos lembra a quem pertencemos e as feras famintas nos dizem o quão fracos, dependentes e à mercê dos cuidados do pastor estamos.

O sofrimento é uma das formas de relembrarmos o sentido de nossa existência, a efemeridade de nosso prazer e alegria!

O pesadelo em que se verte por vezes essa nossa vida terrena é seta mensageira que aponta para aquele cordeiro que, passivamente, foi quem mais sofreu por nós nas mãos de seu próprio pai que dele não passou o cálice, cálice que também não está sendo poupado ao meu velho pai.

O autor de tudo está constantemente a nos alfinetar, a nos fazê-lo temer e por ele clamar.

Com que direito?

Com o que lhe concede o senhorio!

É cruel ou sádico este pensamento?

Talvez.

É mito, pré-ciência ou mentira poética?

Talvez...

Mas... para mim é apenas o amoroso pai eterno que deseja reencontrar cada um de seus amados filhos e às vezes precisa relembrá-los deste encontro marcado!

Junho de 2011