O 'Bendito' Fiado
Por Nemilson Vieira (*)
Num passado não tão distante, as vendas a prazos eram anotadas em cadernetas, cadernos, papel de pão, prateleiras…
A garantia formal das dívidas era quase desnecessário; a ‘palavra’ do freguês valia muito.
Essa cultura, com os anos vindouros, modificou e meu pai, antigo comerciante na minha cidade, queimou alguns cadernos cheios de anotações.
Discussões aconteciam bastante nesse tempo. Sem bons modos para cobrar, meu pai entrava em atritos facilmente com alguns fregueses inadimplentes, na hora das 'benditas' cobranças.
Com o aparecimento do cartão de crédito e débito (o chamado dinheiro de plástico) os prejuízos com essa antiga modalidade de vendas reduziram bastante.
Alguns fregueses não pagam mesmo, nem a luz para dormir; não honram os seus compromissos.
Por aqui o Miguel Pedreiro, não deixou um bom exemplo nesse sentido...
Por precaução dos calotes seu Dega, comerciante do Céu Azul, carregava a fama de não vender fiado. O homem era duro na queda. Alguma coisa saiu sim, sem o devido pagamento à vista; ninguém faz tanto malabarismo assim.
Dissera-me, antes de se aposentar, que nos seus trinta e sete anos por trás do balcão, no dinheiro de hoje julga ter perdido, com os fiados, uns mil reais. — Um grande feito!
Miguel Pedreiro (grande caloteiro da região) sabia da inflexibilidade do seu Dega, em não vender fiado e esperou a hora certa de dar o bote.
O comerciante estava de saída à Ipatinga, ia dar uma demão ao irmão, numa disputa dum cargo eletivo naquela jurisdição.
Já dentro do veículo que o levaria a essa cidade, estacionado à porta do seu comércio, fora abordado por Miguel.
— Queria tão-somente uma unidade de cigarro e uma dose de cachaça, para pagá-lo no dia seguinte, como sem falta (segundo ele).
A pressa é mesmo inimiga da perfeição…
O Dega não desceu do carro; pediu a esposa Corina, que o atendesse e partiu...
Com a mulher o Miguel mudou a estória:
— O que o senhor deseja, seu Miguel?
— Bem… Vou pegar umas coisas com a senhora e conforme combinei com o seu Dega acertarei no seu regresso do interior.
Todos os dias Miguel estava lá a buscar mercadorias e dona Corina anotava tudo num caderno.
O comerciante demorou vinte e três dias para voltar de Ipatinga.
O estrago estava feito…
Ao saber que havia sido passado para trás, o velho empresário não morreu porque não era chegada a hora.
Com bastante ódio procurou uma pedra de amolar para afiar uma velha faca. Estava decidido a ensinar o Miguel a dar calotes nos outros.
Possuía armas de fogo, mas aquele serviço iria fazer, com a sua lâmina mortífera.
Sabia trabalhar com ela. Ia “furar os rins do infeliz.” — Disse.
“Procurei o sujeito por toda a redondeza, durante quatro dias e não o achei”
A pensar no o pior…
Apareceu uma pessoa que mudou o rumo da estória dos dois.
Nas suas andanças à procura do Miguel seu Dega encontrou-se com um amigo, num bar na Rua Elga Taveira.
— Tô lhe vendo meio diferente ultimamente, Dega! — Estranho mesmo!
— Estou à procura do Miguel há quatro dias, para matar. Contou-lhe os motivos e Perguntou se o amigo viu o tal.
— Eu vi-o sim, mais cedo, num caminhão de mudança, por certo estava a se mudar.
Com aquela informação do amigo desviou-se o foco, o furor do seu Dega…
Miguel Pedreiro continuava a dar os seus calotes do mesmo jeito pela região (não se mudara coisa alguma).
Tempos depois, Dega encontrou-se com o dito cujo, o Miguel, pelas ruas do bairro.
Mas, já estava desarmado (de arma e de ânimo) da vontade de fazer o mal a ele.
Lançou o seu ódio no mar do esquecimento.
*Nemilson Vieira de Morais,
Gestor Ambiental/Acadêmico Literário.
(22:09:18)