“A velhice é feito atestado de morte ofertado por terceiros, sem data programada. Se morre pelo tempo que lhe consome os dias, pela dor de viver como se fosse invisível ou por assassinarem a essência (o que sobrou quando a estética despencou), com indiferença...”
Ao acordar, olho pela janela do apartamento como está o tempo. Faz parte do ritual que criei para ver o movimento da cidade. Moro praticamente a 300 metros do centro urbano e as avenidas são minha melhor paisagem. Os carros em movimento, as pessoas apressadas e o barulho. Exceção se dá na janela do quarto quando uma pequena rua de cidade interiorana vira um maravilhoso cenário.
Por ali, já vi passar casais de namorados em pleno êxtase do amor prematuro, crianças correndo como se estivessem em perigo, estudantes “cabulando” aulas e dividindo lanches e “doninhas” e “doninhos” caminhando.
Os passos deles são atraentes do ponto de vista da contemporaneidade: estamos tão acelerados, apressados, que a calmaria nos consome, nos oprime, de certo modo nos intriga. Por que tanta calma?
Um olhar meio de lado torna o encontro entre um casal, um convite. Eles se cuidam nos detalhes. Um estende a mão enquanto o outro faz suporte/bengala. E vice-versa. Também se zangam, e logo depois, fazem caras e bocas, terminando com sinais de negação demonstrados pela violência da torção do pescoço.
Aquela cena corriqueira poderia representar apenas a evolução natural do ser humano e as consequências da maturidade em relação à deterioração do tempo, que não dá férias pra ninguém, nem mesmo para ricos e milionários do século XXI. Não existe elixir da juventude e nem poção mágica para deter o movimento de atração da morte.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística trouxe um dado surpreendente no fim de 2019, entre os anos de 2012 e 2018 a população acima de 65 anos cresceu 26%. Esta média abriu precedentes para uma série de discussões e, inclusive, foi um dos gatilhos que sustentou mudanças na previdência, afinal, seria improvável que a população contribuinte conseguisse manter a grande maioria aposentada, ao menos em tese, o déficit seria evidente.
Fato é que, na velhice está, raras exceções, a somatória mais expressiva de gastos de um ser humano: o investimento na saúde e qualidade de vida! Mas virão os garantidores da promessa social afirmar que existe o Sistema Único de Saúde, bem como, a distribuição de medicamentos gratuitos por programas do governo federal que são a garantia. Sim, mas o preço pago pela ausência de agilidade e eficiência no processo de atendimento, pode lhe custar a morte!
Neste período de pandemia muito se fala no grupo de risco que praticamente vem sendo apagado pela Covid 19 como se fossem estes, apenas números e, não tivessem em sua coluna cervical, o peso da construção da sociedade que se estabelece na atualidade: a democracia e a liberdade não vieram como a abolição da escravatura no Brasil numa conduzida operação para assinatura, custou luta, renúncia, vidas.
Apesar das constatações inevitáveis, ainda vemos alguns “senhores da sabedoria em tons grisalhos” dando-nos a alegria de um papo cabeça, em meio a essa loucura estrutural que se estabelece, em que se desvaloriza e até relativiza, o “apagamento” da nossa origem, ascendência.
Ontem mesmo, ouvi de um colunista de jornal que a “gerontofobia” faz parte do nosso cotidiano e devemos aprender a lidar com ela. Apesar de não ser adepta de expressões que vitimizem o ser humano em virtude da condição de vulnerabilidade em que vive, notei isso, de certo modo, no grito escandaloso do motociclista que, sem paciência para a travessia do casal citado em epígrafe, soltou:
- Velho tem que ficar em casa! Vai pegar Covid e morrer! Não enxerga?
Eles, se entreolharam e de mãos dadas, deram a volta por cima e seguiram no sentido contrário, rumo ao seu domicílio..
Daqui da janela, queria gritar pro motociclista se ele era “filho de chocadeira”, mas ele já tinha vazado, sem capacete. Melhor assim. Ele não vale meu desgosto e nem minha ira.
E de lá pra cá, a mente não para de me perguntar: envelhecer dói mais por dentro ou por fora... Aqueles “doninhos” precisavam de abraço! Não pude dar! Compreendo o medo de envelhecer de alguns... Ilusão a minha sobre o pós-pandemia... Pensei que sairíamos melhores, defendendo a vida acima de tudo, mas não, estamos cada vez mais egocêntricos à espera da sentença do universo. Será que tudo que vai, volta?