Crônicas da Pandemia - A máquina de costura
A Sala era imensa. Casa antiga, de madeira. O assoalho era quase branco de tão limpo. A mobília era composta de uma mesa e quatro cadeiras e dois bancos de madeira. Um rádio na parede, e lógico, o orgulho de Dona Rita – sua máquina de costura.
Não sei até hoje como conseguira comprar aquela máquina, afinal a pobreza era latente, e sustentar uma família de pai, mãe e cinco filhos era muito difícil naquele fim de década de 1960.
A menina, que ainda não ia para a escola, sentava-se ao pé da máquina brincando e sonhando enquanto Dona Rita costurava. Ora um remendo nas calças do marido e dos filhos que labutavam na roça, ora costurando alguma roupa para os vizinhos. Também não sei como aprendera a costurar, afinal passara sua juventude trabalhando na roça com o pai.
Anos se passam e um dia, a menina que já não era mais menina, mostra para Dona Rita, uma foto em uma revista Manequim, junto com um corte de tecido de gabardine de lã e pede que costure a saia tulipa que vê na revista.
A mãe, já idosa, resmunga que não sabe costurar aquilo. Que procure uma costureira. Que aquele tecido é muito bom, e ela não quer estragá-lo. A menina, não mais menina, coloca o tecido sobre a mesa da sala e começa a riscar o molde. Chega a irmã mais velha. Olha aquilo e fala: “você vai estragar o tecido!” Resumo da história – na segunda-feira, ela veste a saia tulipa, um tantinho torta, um tantinho defeituosa, mas que vestia com perfeição, e se tornou sua peça chave naquele inverno de 1987.
Anos se passaram, cursos foram feitos, roupas também, muitas, infinitas. Um dia, desempregada, sem dinheiro para pagar as contas, nas mesmas revistas Manequim, descobriu modelos de bonecas. Começou a confeccioná-las, e assim, por muitos anos, ganhou a vida como artesã. Passou por muitas feiras, lugares distantes, transportou imensas sacolas de bonecas e outras artes por ônibus, metrô, trem para vender seus produtos.
Em uma época de vida melhor, esqueceu as máquinas, os tecidos, as bonecas, os vestidos, a arte. Ficou tudo guardado. Vez ou outra, olhava aquilo tudo e pensava em voltar a costurar, bordar, pintar, mas nada fazia. Até o dia em que a terra parou, a ansiedade chegou, o arfar do peito, o medo do que viria, a distância dos amigos, da família, do trabalho. A solidão. O não ter o que fazer.
Correu para a máquina de costura! Limpou, trocou lâmpadas, agulhas, lubrificou, respirou fundo, abriu as gavetas e lá estavam seus amigos tecidos. Todos tão coloridos, tão vivos, tão convidativos – tão seus! Descobriu que tinha coisas começadas e esquecidas. Terminou tudo, e de repente o mundo precisou cobrir o rosto! Como assim, cobrir o rosto? Sim, o mundo tinha que cobrir o rosto. Pegou seus tecidos e começou a costurar máscaras, para si e para o marido.
E a família? Os amigos? Os amigos dos amigos? Os vulneráveis? Também precisavam! 2.100 máscaras depois, e muitas outras por fazer, em meio a um trabalho voluntário, parei para escrever esta crônica de como comecei e recomecei a costurar.