Lembranças
Viviane contemplava seu filho no berço,
acariciava-o e enlevada, contemplava a formosura de um bebê de
quase um ano de vida. Talvez não houvesse mãe mais
dedicada e feliz no mundo, mesmo entendendo ser impossível
avaliar-se uma coisa dessas já que milhares de mulheres
sentiam-se da mesma forma do que ela.
No entanto, tudo lhe parecia único
e aquele menino, Arthur, compensavam de alguma forma o marido quase
sempre ausente dado os compromissos profissionais que o mantinham
fora a maior parte do tempo.
Talvez essa falta de contato diário
reforçasse o afeto de Viviane pelo menino já que aquele
ser, concebido com tanto amor, relembrava de quem amava e que estava
distante, era uma continuidade, uma partilha e a certeza da volta.
O nome, Arthur, era o mesmo nome do pai
de Viviane, dado de comum acordo com o marido que , por sua vez,
relembrava as lendas do Rei Arthur e os Cavalheiros da Távola
Redonda. Para ela, o nome justificava-se porque não era filha
natural mas adotada e Arthur avô era um homem que dedicou-se
quase que exclusivamente à criação de que
enviuvara. Já para o marido de Viviane, queria o garoto
corajoso, forte, um guerreiro, tão ao contrário da
mulher que o queria cidadão de um outro mundo.
- Sabe Carlos, eu gostaria que Arthur
fosse uma pessoa que não tivesse de lutar tanto como nós,
sabe? Eu o queria cidadão de um mundo de paz, de igualdade e
de liberdade, em todos os aspectos.
Nesses momentos de presença
rara, Carlos declinava ao anseio de argumentar, até porque, no
seu íntimo, bem queria que assim fosse, que as pessoas
pudessem viver em uma outra cidade, uma outra família e que as
relações pessoais fossem dadas mais pelo afeto e pela
dedicação generosa aos outros.
Sabia também que aquilo era uma
utopia até temerária mas a transformação
apenas começaria se os pais e mães ensinassem aos seus
filhos valores novos e coerentes com a dignidade humana, sendo que,
por isso, não desmentia as pretensões de sua esposa.
Tudo isso Viviane relembrou antes da
campainha tocar, campainha que anunciava a chegada de seu pai.
Alegrou-se, foi até a varanda e acenou para ele.
Estava impressionada com o desgaste de
seu pai depois de um problema sério de saúde. Aos 73
anos, em nada parecia o homem ágil de sua juventude, já
que tinha de andar aparado por uma bengala em passos muito mais
lentos do que lembrava ser usual desde sempre.
- Pai! Não vá subir
escada! Eu vou descer com o Arthur.
Ele sorriu e acenou que estava bem.
Entrou na casa e tomou seu assento habitual no sofá da sala e
aguardou. Pouco depois, descia Viviane com Arthur que foi acolhido
pelo avô de forma emocionada, tomando-o nos braços e
beijando-o.
- Como você está, minha
filha?
- Estou bem , papai. Carlos ligou ontem
à noite e chegará amanhã. Gostaria de ir comigo
buscá-lo no aeroporto?
- Quem vai ficar com meu neto?
- A minha cunhada. Não se
preocupe.
- Está bem! Vou com você
então. Me pega em casa, tá?
- Claro.
Arthur pai brinca com Arthur Neto e
Viviane, por sua vez, recorda de velhas cenas familiares. Como
esquecer um dia em que já pré-adolescente, sentara-se
na frente de seu pai na mesa de jantar e enquanto ele tomava um
cálice de vinho do Porto, observou seus movimentos lentos e
elegantes e recordou-se de algo que fora discutido na sala de aula,
disparando a pergunta à queima roupa:
- Papai! Você tem medo do quê?
Lembrou-se que seu pai pôs-se a
pensar e bebericar para ganhar algum tempo de reflexão.
Percebeu que seu pai esforçava-se por relembrar fatos,
rebuscar sentimentos antes de responder.
- O meu maior medo sempre foi o de ser
esquecido, minha querida! De não ter ninguém nesse
mundo para lembrar-se de mim e de sua mãe quando nos formos.
Agora, depois da morte da sua mãe, o que eu tenho medo é
de acontecer alguma coisa comigo e deixá-la sem quem seja por
você. Tirando isso, talvez seja o medo de um futuro sem saúde.
Recordava-se aquilo porque sabia muito
bem que aquele não era um desejo egoísta mas a
percepção de alguém que sempre buscara a
felicidade e a encontrara em sua mãe que lutava contra doenças
mas sem quem não poderia viver, isso tinha certeza. Dedicara
um amor absoluto àquela mulher, cuidando sempre para que
tivesse tudo aquilo que fosse possível, sem nada faltar.
Tiveram uma vida modesta mas não
se recorda de ter sentido falta de nada, nem material, nem
emocionalmente. Lembrava-se também do pavor que viu estampado
nos olhos de seu pai quando finalmente chegara o momento de dizer com
todas as letras que era adotada mas também viu as lágrimas
correrem livremente nos olhos daquele homem quando formara-se na
faculdade, quando casara-se, quando Arthur Neto nasceu.
Sentia-se afortunada de ter sido acolhida por uma família como aquela! Sua mãe estava ali, sempre presente. Foi a primeira pessoa em quem pensou quando o
filho nasceu e apresentou-o a ela:
- Mamãe, esse é seu neto!
Que do plano maior você o abençõe e o ame tanto como me amou e me ajude, sempre, a ser uma mãe tão boa como a senhora foi! Te amo.
Lembrar de tudo isso encheu seus olhos de lágrimas. Tentou disfarçar de seu pai mas não conseguiu. Ele olhou de lado e sorriu.
- Lembrando-se do que? De sua mãe?
- Também, papai mas lembrando-me principalmente de você.
- De mim?
- É... No que o senhor respondeu quando te perguntei sobre seu maior medo.
O velho sorriu, aberta e ruidosamente como era seu costume.
- Era de ser esquecido, não é?
- É...
- Pois é! disse, pegando seu neto no colo Nunca serei esquecido, tanto por ele, como por você.
Toda a minha vida de batalhas valeu a pena, meu amor. Sua mãe tinha muitas dúvidas se deveríamos ou não adotar filhos já que ela tinha o problema de saúde que você sabe. No entanto, eu insisti. Não pense que ela tinha objeções egoístas, isso não! Ela temia que tudo fosse um fardo muito grande para mim, que tivesse de fazer tudo sozinho e se teria condições de fazê-lo bem.. Ela sabia que você era a nossa continuidade, era ela viva em você mesmo que você não tenha nascido do ventre dela. Sabe, Viviane, você sempre foi um sonho antigo meu, desde jovem, você estava lá, me visitando, caminhando comigo. Quando casei-me pela primeira vez e a minha primeira mulher não podia ter filhos, você ficou brava comigo, acusando-me de não deixá-la nascer. No entanto, depois eu soube porquê você não poderia jamais ser filha dela.
Viviane perguntou o porquê.
- Porque, Viviane, você não nos escolheu porque estava destinada a viver em um lar de discórdias mas , ao contrário, deveria viver em um lar de paz, onde nunca faltou amor! Você se lembra o quanto sua mãe se esforçou e foi efetivamente um boa mãe?
- Claro, papai! Ela me ensinou a sonhar o mundo que eu quero para o Arthur. Um mundo novo, de paz, de amor...
Nada como o senhor ou eu conhecemos.
- Pois então! Se você tem esse propósito, o sonho de sua mãe triunfou. E você escolheu um lar que, se não foi o ideal, foi de um amor pleno e que a construiu tão grande! Tudo, mas tudo mesmo, valeu a pena!
Abraçaram-se e Viviane agora chorava aos soluços. Como amava seu pai e sua mãe! Herança bendita que tivera o privilégio de ser a portadora. De que importa que um outro ventre a tenha gerado? Filiação não é algo material apenas, sendo, na verdade, uma conjunção de destinos, de missões, tarefas e carmas.
Lembrou-se de tudo quando foram buscar Carlos no aeroporto, quatro meses depois quando Arthur sofrera um derrame cerebral e infinitamente mais quando ele finalmente desencarnou, quase dali um ano.
Viviane sofreu, chorou, precisou de apoio e de uma renovada motivação para superar aquele momento terrível. Encontrou forças no menino que crescia à olhos vistos, feliz e saudável. Todas as noites, como de costume nos tempos que seu pai era vivo e ela criança, sentavam-se no quintal, próximo ás árvores. Nessa ocasião, Arthur olhava para o céu e apontava uma estrela e dizia que ali residia sua mãe falecida. Agora, Viviane reconhecia um par de estrelas belas e atribuía uma ao seu pai e outra à mãe. Elasestavam logo ali e sempre eram vistas nas noites de primavera, transformando-se em sua bússola e norte de toda a vida, aspirando à eternidade e à lembrança perpétua.
- Você não precisa ter mais medo, papai!
Foi tudo o que Viviane pode dizer antes de voltar para dentro de casa. Mais uma vez, o sonho triunfara.