Infortúnio de Afonso
Por Nemilson Vieira de Morais (*)
Com meu irmão e amigos de primeira infância, visitávamos com regularidade o bananal do seu Afonso nas caçadas de pássaros...
Havia bananas maduras nos cachos, com furos por cima ou por baixo; sinal das visitas constantes das aves do lugar. Pipira (sanhaço), corrupião (sofreu), sabiá…
Homem bom, o Afonso. De poucas posses, mas trabalhador e honrado… Numa certa altura da vida, desandou-se; deu um atrapalho na família: a mulher debandou-se com outro, levando consigo os filhos.
Com o tempo sua casa do nada, pegou fogo com a plantação de bananas. Tudo o que possuía tornou-se em cinzas; e quase morreu de desgosto…
Certo dia um amigo o convidou a uma caçada conhecida, no nordeste, por 'facheada'. Uma picada feita por baixo das matarias, que após varrida o caçador se põe a andar na mesma; num sentido e noutro. A noite, com uma lanterna, num pisca-pisca sem fim e de mão a uma espingarda surpreende e abate a caça, que tenta atravessar a vereda.
Aquele dia não foi de caçadores…
Terminaram o trabalho (de fazer a picada no mato) ainda cedo da tarde; o amigo de Afonso disse a ele que o aguardasse um pouco, pois iria dar umas voltas por perto. Caçar algum bicho miúdo: um preá, um inhambu…
Ao retornar sentido a vereda, alguns metros de distância a frente, ouviu um barulho por baixo das ramagens. Afonso firmava o cabo de sua faca (que havia afrouxado). O amigo visualizou apenas o seu cotovelo em movimento e achou ser uma cotia pirraçando. Com a espingarda engatilhada na direção do bicho, logo apertou o gatilho: bam!
Ai! Aí! Aí! — Gritou desesperado o Afonso, em dores profundas... O amigo correu apavorado para acudir seu companheiro.
Com perfurações de chumbo-fino por todo o corpo e, por complicações sérias que isso poderia acarretar, seu colega pensou no pior e, agiu com rapidez...
Avistando à escuridão da noite iniciou o martírio do transporte de Afonso. O amigo o jogou nas costas e se pôs a procurar uma ajuda varando o emaranhado da floresta.
Um galo cantou ao longe…
Era o sinal que precisava; marcou o rumo e foi-se. — Orientado pelo repetido canto da ave chegou ao morador.
Afonso apresentava sinais de agitação, pelo balanço do corpo na viagem dolososa nos ombros do colega. — Ainda vivia.
Seu amigo não escondeu nada: contou ao homem com riqueza de detalhes tudo o que acontecera entre os dois...
O senhor, após ouvi-lo atentamente…
Indicou ao vitimado um remédio caseiro muito usado naquele tempo: um frango pisado no pilão com pena, tripa e tudo... do jeito que fosse pego no poleiro. Não carecia de sal; um pouco de água somente. Até que chegassem aos recursos da medicina no Distrito de palmeral, lá ou na sede do município em Esperantinópolis, entrariam com os cuidados e uma medicação coadjuvante mais conveniente ao tratamento.
Houve uma observação ao uso daquele paliativo: ao bebê-lo não devia vomitá-lo de forma alguma, caso contrário morreria.
Afonso ainda consciente, por certo ouvia tudo em profundos gemidos.
Consultado se topava beber o tal remédio naquela condição... aceitou com repugnância. E após o frango pisado o morador despejou a mistura numa caneca grande, mexeu e deu ao baleado a tomar.
Afonso bebeu o frango pisado no maior sacrifício do mundo; com uma cara daquelas… a cada gole que dava fazia menção de jogar tudo para fora, mas não jogou.
Missão cumprida, providenciaram uma rede para o traslado do paciente e alguém para ajudar na condução do mesmo. E no percurso também Afonso não provocou vômitos; resistiu bem a viagem.
No recurso, seu tratamento foi trabalhoso gastou-se um tempo para remover grande parte do chumbos do seu corpo e a saúde voltar.
Tempos após, o episódio, Afonso contava o fato aos moradores de Palmeral:
"o pior de tudo não foi o tiro da cartucheira, e o sofrimento da viagem (nas costas do amigo e na rede): o mais terrível foi beber aquele frango inteiro, pisado e fazendo forças pra segurá-lo no estômago."
*Nemilson Vieira de Morais
Acadêmico Literário (ANELCA/ALB-MG).
(27:02:18).
Nem1000son@gmail.com