DIVAGANDO NO DOMINGO



Sabe aquele dia em que você desperta no melhor estilo "cachorro que caiu do caminhão de mudança ?
Eis o meu retrato neste começo de domingo.
Fazia o meu desjejum, quer dizer, empanturrava-me de café e bolo de laranja, até porque, "desjejum" é coisa de gente chic, né ? Eu, sou do tipo "simprão".
À espera dos demais de casa que ainda não tinham revestido-se da minha coragem para encarar o frio, eu dividia o tempo entre um gole e outro de café,e espiadelas , pela vidraça, ao quintal que amanhecera congelado.
Agora, sob o sol tépido das dez e meia,as uvaias temporãs amarelavam-se em pencas nos galhos do pequeno arbusto.
Um sabiá cerzia a grama em passos desengonçados e o céu, de um azul profundo, remetia-me a algum momento de mim que eu não conseguia decifrar.
Vêm-me à lembrança alguns domingos tão azuis quanto este, ainda que sem o frio que agora experimento.
O macarrão caseiro tecendo-se dos braços de minha mãe, meu pai se barbeando, o cheiro mentolado da dinossáurica "Agua Velva" e o velho rádio à bateria escancarando-se pelas redondezas.
Aos domingos, sempre sintonizado na rádio Clube Paranaense, a "B2", no programa "Recordando".
Não bastassem as valsas, era eu submetido ainda à voz de falsete da dona da casa e ao assobio (meio tremidinho) daquele que barbeava-se.
Tão vivo em minhas lembranças, aquele refrão - cantado, assobiado e propagado pelas ondas sonoras:

"E no céu, junto a Deus///Em silêncio minh´alma descança///E na terra, todos cantam///Meu tormento,minha desventura,minha grande dor..."

Logo eu ! Que era fã da jovem guarda !
Não demorava e aparecia a figura doce, terna ,de vó Izaura, sempre acompanhada de uma neta, para o almoço de domingo.
Ela adorava as cantorias lá de casa e assim, era eu , um voto vencido.
Aquelas manhãs tinham acalanto ! tinham um clima de harmoniosa convivência numa cozinha ungida à frango caipira com manjericão e salsinha.

Observando agora as minhas uvaias no quintal, o vento frio empurrando flocos brancos de algumas núvens teimosas em desafiar o anil do céu,o sabiá desengonçado, as folhas na grama, sinto-me feito um viajante no vagão de um trem.
O vidro da janela me proteje, o calor da cozinha me aquece e o vapor que ergue-se de minha xícara, evoca-me uma gueixa na sensual dança do ventre.
O trem acelera nas paralelas ilusórias de meu devaneio e ponho-me em compasso de espera até que uma proxima estação faça-me desembarcar muito perto daquele tão antigo pomar onde deixei alguns sonhos bem guardados nos troncos das macieiras.
Saio do transe e vou abrir o cadeado do portão da frente de casa.
Meu bairro parece agora , um conjunto de bibelôs embalados para presente.
O sol da manhã gera-lhes um brilho especial e, porque é domingo, estão embrulhados em papel celofane.
Abro os braços e aspiro - sem máscara - a doce pureza emanada não sei de onde.
Nada de trânsito na sempre movimentada avenida que cruza em frente onde moro. Na curva, a pouca distância de onde me encontro, apenas uma carroça cor de abóbora e verde. Dois cavalos, com ares festivos, a puxam com uma quase solenidade.
O vento eriça-lhes as crinas e as batidas das patas aliadas ao ruído das rodas, lembram - sem exagero - algum trecho de Tchaikowski, ou a magia de "Lendas dos bosques de Viena" de Straus.
Cruzam à minha frente, sentados confortavelmente sobre um grosso pelego de um amarelo vigoroso. Em trajes de domingo, o casal acena-me amistoso.
Correspondo, e o condutor da carroça, grita-me num tom prejudicado pela máscara que usa:
- Vamos almoçar "na parentada!" e desata um largo sorriso.A mulher, ao seu lado, sorri discretamente, acena-me e a "carruagem" vai ganhando a reta que os levará a alguns lugares que conheço e gosto muito.
Altivos , os cavalos correm como se ali ! Logo adiante, fosse o paraíso.
Eu, que a pouco desembarcara do comboio das lembranças, com uma pontinha de inveja, os sigo até onde alcança o meu campo de visão.
O ruído estridente do portão de ferro,insinua-me um tempo de voltar.