Sim, Deus não existe!?

Gélido corredor de hospital...

Adiante, em um dos quartos, o crepúsculo nas montanhas distantes adentra e pinta de tons laranja-amarelados a mobília alva. Sentada na cama, brincando com um hotwheels, uma doce criança se permite fantasiar. Mal sabe que o futuro, a grande astronave que não conseguimos pilotar, se aproximará dentro em breve com um doloroso convite nos lábios... Não distante dali os pais ajoelham-se, abraçam-se, choram, copiosamente! Em sua frente, um senhor de branco apenas cerra os lábios e cruza seus braços impotentes. E a criança fita os últimos raios de sol do dia. Dentro do modelo esportivo, o capacete escondendo a cabeça já sem cabelos, acelera, e o brinquedo se transforma em poderosa e ingênua arma contra todos os seus fantasmas. Quanto vale um infante e esperançoso olhar ao por vir?

Curva de uma BR qualquer...

O senhor de meia idade recobra a consciência. O que teria acontecido? Foi tudo tão rápido. Um Camaro em alta velocidade transitando na faixa contrária. Um vermelho quente umedece os grisalhos cabelos. Não tem forças para se levantar. Teme o pior. Bem que lhe diziam que moto é arma! Sente duas faces desconhecidas tamparem de sombra seus olhos. Contra o sol, só enxerga vultos escuros. Não consegue atinar o que dizem. Como assim ‘quanto sangue’? Sua vida de humildade, luta e sofrimento passa-lhe em segundos. Como seria bom quando pudesse chegar novamente em casa e abraçar os filhos amados. A luz vai se afunilando num túnel solitário rumo ao desconhecido.

Clínica psiquiátrica...

A jovem senhora que permanecera em todas as sessões ao fundo, num cantinho, quieta, os olhos estáticos fitando o nada, decide olhar para o musicoterapeuta e pede para este cantar um sucesso sertanejo. A razão? Ela cantava essa música com o filho que falecera recentemente. O terapeuta desconhece a música, mas aprende e, na semana seguinte, satisfaz o pedido da paciente. Enquanto canta, as cálidas lágrimas brotam fáceis, sem contenção, no rosto branco da mulher, refazendo um caminho de dor existencial, profunda, cinza.

Em algum lugar do mundo e em todos ao mesmo tempo, pessoas de todas as idades se encontram, comemoram, dançam, embriagam-se, ou ficam sóbrias, com luzes de laser a rodopiar, ou com velas em meia-luz, a dois, ou mais, a vibrar em sinuosas olas gritando ‘gol’, ou a ter os pelos eriçados pelos acordes de uma orquestra de câmara, enfim, a vida pode ser festa.

É por isso que freudianos, darwinistas e marxistas deveriam ter convencido o mundo a ser mais incisivo em dizer quando a festa tem de acabar!

Sim, digamos em alto e bom som à criança que, para onde irá, não haverá mais carinhos hotwheels, pois não irá para lugar algum; Não tenhamos dó em afirmar ao homem grisalho que não tem com que se preocupar, pois os que ficam apenas curtirão a festa por uns poucos instantes mais e que sua modéstia foi apenas vaidade; Sim, sejamos verdadeiros e sem rodeios em tirar da jovem senhora a ilusão do reencontro, a ilusão de que a festa continua.

Sim, retiremos as máscaras de hipocrisia para desocultar a verdade.

Mas... Quem se habilita?