PROMESSA

Fazia muito frio na noite em que Eveline pariu sozinha.

Agachada à sombra de um muro derrubado, nua da cintura para baixo, sentindo o corpo explodir pela vagina, ela fazia força e respirava em arquejos. A criatura que nasceu estava coberta de mecônio, era muito branca e seu choro condensava em névoa no ar noturno. Em instantes havia cortado o cordão com uma gilete presa a um pau, que sempre trazia consigo para se defender, e expelido a placenta. Ficou sentada no chão, com o bebê nos braços, tentando se agasalhar com a toalha de banho, único enxoval que tinha.

Na noite fria, sob a luz das estrelas, contemplou o pequeno e sonhou com um futuro. Sonhou com o conforto, a limpeza e a segurança. Com roupas quentes. Sonhou com o amor e outras delicadezas, com um baile repleto de convidados que se amavam, com crianças vestidas de pirata e bailarina correndo entre as mesas.

Na manhã seguinte, à primeira luz do sol, estava às portas da Casa da Criança, depositando o menino enrolado na toalha junto à porta. Deu-lhe um beijo na testa e seguiu caminho. Andou mais um quilometro até achar um terreno baldio, entrou por ele até o fundo e adormeceu, dando finalmente ao corpo um pouco do descanso que há meses não tinha. Dormiu a manhã toda, até o meio da tarde. Acordou mais suja, mais faminta e mais determinada a comparecer na festa de sua vida.

Começou voltando para casa. Tinha casa, sim, e se vivera nas ruas, era por não suportar viver dentro de casa. Nos meses seguintes ouviu todo o repertório que começava com vagabunda e terminava com irresponsável. Levou novamente a culpa de tudo que andava errado com a mãe e o padrasto, tomou tabefes dos irmãos, foi apontada como mau exemplo pelos parentes. E só se defendeu quando o padrasto tentou novamente toma-la à força, como fazia desde seus 12 anos. Com a gilete presa a um pau.

No ano seguinte veio a maioridade e um emprego que lhe permitia se sustentar mais ou menos. Fez as malas, pediu a benção só por desencargo de consciência e partiu. Um último sermão, uma última distribuição de culpa, e pronto. Estava livre. Trilhou o caminho da solidão, da parcimônia, do esforço. Aprendeu o valor do dinheiro. Trabalhou até em três empregos. Chorava diante de toalhas de banho e não fazia amigos. Calada e concentrada. Flecha magnífica correndo para o alvo.

Vinte anos e muitas lágrimas depois, era médica. Estava na hora de preparar a festa. Procurou pelo filho, parido silenciosamente no meio da noite. Tinha sido adotado. O casal não morava mais na cidade. Ele estava por aí, pelo mundo, esperando para ser encontrado. Cabia a ela saber onde procurar. Deus a ajudaria. Não é fato que as mães estão destinadas a sempre encontrar seus filhos?

O destino interferiu. Colocou na ala de oncologia um rapaz com leucemia. Acompanhado dos pais, recebia a transfusão de sangue, pálido e magro. Na verificação do paciente mal podia acreditar na sua sorte. Tinha a marca em forma de morango acima do joelho esquerdo. Era seu bebê, retornado a ela no tempo certo, quando ela estava pronta para dar-lhe o mundo. Começou doando medula de forma anônima. A compatibilidade era perfeita, a cura era certa. No devido tempo, recebeu os pais emocionados no consultório. Cogitava contar-lhes a verdade, pedir que lhe deixassem ser mãe um pouquinho. Vivenciar a esperança que tinha mantido o escuro e a frialdade da noite longe do seu coração. Eles haveriam de compreendê-la.

Diante do casal inundado de felicidade, a reflexão instalou-se. Havia amor e uma ligação forte naquela família. Seriam capazes de lutar uns pelos outros. Tinham tido bastante tempo para tornarem-se unidos. O baile tinha começado há vinte anos, e o filho tinha ido sem ela. O que fazer agora com uma mãe biológica em quem ninguém pensava mais? Adotá-la? Entregar-lhe o filho? Modificar toda a perspectiva de mundo para incluí-la? Enquanto ouvia aquela família saudar a cura com alegria, decidia. Calou-se. O abraço de gratidão que o rapaz lhe deu, seria o único que receberia do seu menino. Agora sabia seu nome, onde morava e era amiga da família. A noite escura e fria chegara ao fim, e o dia ensolarada encontrava cada um em seu devido lugar.

Tangará da Serra, 23/08/2020.

Lucimara Vaz
Enviado por Lucimara Vaz em 23/08/2020
Reeditado em 16/04/2021
Código do texto: T7044232
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