Beatriz atravessa o rio

Beatriz é uma daquelas pessoas que vive como quem atravessa um rio. Pezinhos descalços, sente a água gelada e o arrepio do dedão ao mais longo fio de cabelo, e entre a inocência e teimosia, na beirinha se acocora para dar tempo ao tempo à temperatura, e logo, em questões de segundo, se ergue, lentamente, à procura da pedra mais lisa e firme onde irá colocar seus pés.

A primeira, a segunda, ops! essa pedra é boa, mas tá cambaleando, escolho outra, não encontro, vou nessa mesmo, é só não colocar meu peso, como se ossos eu não tivesse, deu certo! tenho é que evitar as que têm musgo, são escorregadias, procuro de preferência as lisinhas, sem aspereza, meus pés já doem. Sinto um pouco de cãibra. Ah! nessa parte tá raso. Posso pôr os pés na areia. Acho até que vou descansar um pouquinho aqui, onde este belo raio de sol alcançou, arranjando espaço por entre as árvores enormes que circundam o rio. Mas não me posso demorar. Daqui a pouco escurece e a maré também pode encher de uma hora para outra. E por que acontece isto assim tão de repente? Dizem que em um minuto ela enche e não há como escapar, nem se for um nadador. E eu nem sei nadar, ninguém me ensinou. Não morro, é verdade, sou capaz de sair de uma onda gigante catando cavaco com toda a areia do fundo do mar pesando no maiô, mas me salvo, bem, pelo menos até agora. É, vou levantar e continuar, senão acabo por esquecer de mim aqui nesse solzinho e viro um sapo, haha! já imaginou? Se assim fosse a vida? Se você pudesse escolher o que quisesse ser? Eu teria que pensar mais um pouco para escolher, um sapo é bom, mas tem boca muito grande e eu não gosto de falar muito. Me ergo, me sinto mais relaxada agora, acho que até demais, me deu é sono, essa água limpa, límpida e fria, e esse solzinho para iluminar, me dar segurança, esse raio tão forte que atravessa tudo e todos. Então, Beatriz, é melhor se apressar antes que vire mesmo um sapo. Ai, ainda não sei o que você é: criança, idiota, gênio ou maluca, mas siga, que daqui a pouco escurece e vai ver o que é ser adulta num instante!. Eita que depois dessa ‘rasura’ tem aqui uma parte bem funda, parece um buraco e a corrente parece mais forte e não tem nem pedra para segurar. Para trás não volto, as pedras que passei, passei. Sapo até sim, mas caranguejo nunca! Olho para esquerda, para a direita, para o alto, parece que o raio de sol já se escondeu, ou melhor, essas frondosas árvores o esconderam de vez, nossa, como parecem poderosas. Está ficando mais frio. É que agora me deu um certo medo. Se eu dou um passo e caio no buraco quem irá me salvar? Olho para cima, as árvores se juntaram, e agora me olham, curiosas, parece que zombam de mim. E aí menina feliz? E agora, que o raio se foi e você está com medo, o que vai fazer? Sinto uma ironia sádica, um misto de curiosidade, cobiça e inveja, talvez da minha liberdade de ir e vir, de arrancar-me de minhas raízes e poder ir viver para qualquer lugar. Eu até entendo a inveja delas, mas eu não tenho culpa. Posso até fazer um trato: vocês me quebram um galho e eu me safo. Faço uma espécie de ponte para eu me pendurar. Mas prometo que não o deixo aqui, eu o levo comigo para toda a vida, e muito grata. Assim, pelo menos parte de vocês viaja, que tal? Não me ouvem, como são soberbas e surdas, coitadas. Então, fiquem aí estagnadas! Jamais passarão para o outro lado! Não terão nada de bom para contar! Olho à direita, à esquerda… ops, estou vendo que lá embaixo tem espaço, vou descer um pouco o rio, parece seguro, a água não se agita tanto, é para lá que vou! Ufa, é, está um pouco sujinho, tem até restos de comida, mas me parece mais seguro! parece outro lugar e no entanto estava pertinho, acho que posso atravessar tranquila, apesar de dizerem que nessas partes mais baixas é que mora o perigo, que há cobras e outros bichos selvagens à espreita para te pegar de assalto. Essas criaturas se escondem nas águas mais rasas. Bem, até agora não vi nada disso, só uma aranhinhas (acho engraçado, tem gente que morre de medo de aranha, para mim são trabalhadoras e inofensivas) e alguns mosquitos, pudera, com tanto lixo, mas me sinto muito mais segura do que lá em cima. E mais um pouco chego lá! Chegando, acamparei e, continuarei, sem anseios, o caminho, me levando pela intuição e, como diz aquela música, enquanto houver sol, haverá sempre uma saída…

Quando não houver saída

Quando não houver mais solução

Ainda há de haver saída

Nenhuma ideia vale uma vida

Quando não houver esperança

Quando não restar nem ilusão

Ainda há de haver esperança

Em cada um de nós

Algo de uma criança

Enquanto houver Sol

Ainda haverá

Enquanto houver Sol

Quando não houver caminho

Mesmo sem amor, sem direção

A sós ninguém está sozinho

É caminhando

Que se faz o caminho

Quando não houver desejo

Quando não restar nem mesmo dor

Ainda há de haver desejo

Em cada um de nós

Aonde Deus colocou

Enquanto houver Sol

Ainda haverá

Enquanto houver Sol

Ainda haverá

Enquanto houver Sol