SEM TÍTULO
Para os "olhos de não se ver" era só mais um dia, desses entreabertos na pandemia, que já quase se findava frio em mais um semáforo da esquina,fechado às vidas e aos automóveis.
As pessoas, apressadamente, pareciam sair das tocas, enclausuradas há tempos pelos medos vários daquilo tudo que tira a vida viva e morta da sintonia dos propósitos.
Contar da frialdade dos semáforos das cidades grandes, dessas tantas por aí, megalópoles que incitavam sonhos de prosperidade como a nossa grande e sofrida São Paulo, redunda em histórias, todavia, aquela cena costumeira me pareceu diferente à sensibilidade do se enxergar.
Tratava-se ali de mais uma criança como tantas outras, verdadeiros exércitos dos perenes abandonos que pululam pelas ruas.
Não se trata aqui de fazer poesia sensacionalista das tantas tragédias, mas sim de se olhar para o cerne do invisível a catalogar o sentimento sobre as realidades mutantes das ruas, mesmo donde menos se espera a possibilidade de notar que algo já tão cáustico ainda possa se tornar mais doloroso.
Há anos atrás escrevi uma crônica intitulada "EMPRESA SEMÁFORO" onde ali eu descrevia minha sensação da atividade econômica que crescia pelas ruas.
Parecia assustador...e seria só o começo duma era.
Digo hoje que, naquela época, se tratava duma empresa mais próspera.
As pessoas que ali vendiam "de um tudo" tinham, ao menos, brilho nos olhos...perspectivas a virem ser concretizadas, talvez.
Tinham sorrisos que se podia enxergar...e lê-los e escrevê-los e descrevê-los!
Não demandavam por máscaras para a garantia da felicidade de livremente se respirar e subsistir.
Tinham sorrisos largos e receptivos como abraços.
Ali desfilavam com vassouras, paninhos de louças, esfregões de chão, baterias de celular, protetores de sol, apoio para óculos, chocolates , água,balinhas embrulhadas a centavos de custo...tudo no sonho de empreender vida.
Era triste ,mas se sentia uma alma viva dentro daquele empreendedorismo das ruas, ou seja , a possibilidade do faturamento do dia cobrir a subsistência em meio à cidadania tão negada.
Havia fregueses disponíveis a comprar.
No final do dia era hora da arte que salva, interlocutora de sentimentos dos mais profundos, a dos malabaristas dos semáforos, verdadeiros artistas das ruas que nos ensinavam que viver é repaginar nossas coreografias a cada dia. É como aprimorar o jogo das cinturas pelos apertos dos tempos.
Sim...O tempo passou. Por todos nós.
Volto, então, à criança do farol da pandemia dos abandonos, a de dias atrás, parte do que chamo de "a infância dos faróis de hoje em dia".
Era só mais uma candidata à malabarista pelos tempos que correm...
Sempre que as encontro foco-lhes o olhar, e mesmo que não, sei que sempre uma delas termina no vidro da minha janela do carro para alguma palavra trocada, um sorriso e é assim que fico sabendo de suas vidas surreais. E depois desaparecem pelos retrovisores dos dias.
Desta vez foi em vão.
A criança , talvez uns doze anos não mais, sem máscara protetora pelos ares e com os quatros membros desnudos sob o frio, trazia consigo cinco bolinhas desconexas entre os dedos e um olhar vago de cortar a alma, que se perdia ao horizonte da avenida, menino sem nada pedir, sem nada falar, sem nada executar.
Fiquei esperando pelo malabarismo reexistir.
Nada aconteceu naquele palco triste.
De repente, uma das bolinhas lhe escapou dos seus dedos desnutridos por dentre os carros e o menino automaticamente se agachou no asfalto a segurá-la fortemente antes que perdesse seu rumo avenida afora.
Pensei:"Deve ser desesperador deixar escapar o único elo de esperança ao malabarismo existencial...".
A bolinha, eu sei, tinha rumo certo: coreografar a sua reexistência no semáforo da cidade, embora nitidamente sem força motriz sobre ela.
Já a criança...quem saberia contar do seu rumo a ser tomado?
De fato, parecia um milagre aquele menino sair da sua apatia flagrante a se rearranjar numa reexistência do que nunca existiu.
Foi quando percebi que mais uma crônica do farol ali estava escrita: seria minha obrigação registrar meu sentimento perante aquele olhar vago, cortante como navalha afiada, desvitalizado, em súplica perdida na névoa que caia, como se a procurar pelo nada dum algo perdido que nunca lhe fora dado.
Talvez, quem sabe, procurava por sua vida futura escrita numa página em branco, a correr pela avenida...e absolutamente sem título.