O lirismo no Direito
Não são poucos os juristas que paralelamente a sua atividade profissional e intelectual no Direito, também cultuam as belas letras, e contribuem para valorizar a riqueza da língua portuguesa. O grande jurista Tobias Barreto, por exemplo, nos deixou um livro de poesia chamado “Dias e Noites”, onde o criador da Escola do Recife, nos mostra que nem só de hermenêutica jurídica se faz um advogado. Pontes Miranda, autor do imenso “Tratado de Direito Privado” – considerada ainda hoje a maior obra já escrita por uma única pessoa, com 60 volumes e a façanha de ter consultado 12 mil livros para escreve-la – também se dedicou aos versos, publicando um afamado volume de poesias em francês chamado “Poèmes et chansons” em 1969.
Quem nos conta essa interessante história é o próprio autor da peça, o advogado Ronaldo Cunha Lima, político e poeta paraibano, membro da Academia Paraibana de Letras, como um exemplo de que as lides jurídicas conseguem conviver em harmonia com lirismo poético. Depois de ter conseguido a liberação de uns porcos de criação de um amigo que incomodava muito a vizinhança e que por isso tinham sido apreendidos, através de um “Habeas Porcos”, protagonizou outro caso acontecido em 1955, no início de sua carreira advocatícia, que ilustra bem a poesia que se esconde onde menos se espera. O caso ficou conhecido como “Habeas Pinho”.
Diz que um grupo de boêmios em Campina Grande, terra onde o poeta estudou e iniciou sua carreira política, faziam alegremente uma serenata e ao ser chamada a polícia, acabaram levando o preso o violão, ao que o grupo foi pedir ao jovem advogado, também chegado a versos e serestas, uma ajuda para que pudessem reaver o “instrumento do crime”, no que o nobre causídico escreveu a petição em versos dirigido ao Exmo. Sr. Dr. Arthur Moura, Juiz de Direito da 2ª Vara da Comarca: “O instrumento do crime que se arrola/neste processo de contravenção/não é faca, revólver nem pistola,/ é simplesmente, doutor, um violão.// Um violão, doutor, que na verdade/Não matou nem feriu um cidadão./ Feriu, sim, a sensibilidade/de quem o ouviu vibrar na solidão.” E continua: “O violão é próprio dos cantores,/Dos menestréis de alma enternecida/ Que cantam as mágoas e que povoam a vida/ Sufocando suas próprias dores”./.../ “!Seu viver, como o nosso, é transitório,/ Porém seu destino se perpétua./Ele nasceu para cantar na rua/ E não para ser arquivo de Cartório.” E termina assim: “Mande, pois, libertá-lo da agonia/ (a consciência assim nos insinua)/ Não sufoque o cantar que vem da rua,/ Que vem da noite para saudar o dia.”// É o apelo que aqui lhe dirigimos,/ na certeza do seu acolhimento./ Juntada desta aos autos nós pedimos/ e pedimos também deferimento.”
Sobre a resposta, divergem os que nos contam essa história. Para uns o juiz respondeu a petição nos metrificados versos de um soneto: “Recebo a petição escrita em verso/E, despachando-a sem autuação,/ Verbero o ato vil, rude e perverso,/ Que prende, no Cartório, um violão.// Emudecer a prima e o bordão,/ Nos confins de um arquivo, em sombra imerso,/ É desumana e vil destruição/ De tudo que há de belo no universo.// Que seja Sol, ainda que a desoras,/ E volte á rua, em vida transviada,/ Num esbanjar de lágrimas sonoras.// Se grato for, acaso ao que lhe fiz,/ Noite de luz, plena madrugada,/ Venha tocar á porta do Juiz.” Outros dizem que diante dessa demonstração poética se sentiu na obrigação de responder na mesma linguagem, despachou a petição do poeta, também em versos populares: “Para que eu não carregue/ Remorso no coração,/Determino que seja entregue,/ ao seu dono, o violão”
E ainda há quem diga que não existe lirismo nas lides jurídicas.