Entre Balas e Mágoas




Dia desses, li um artigo que me foi enviado por email com o título: "Cazuza era marginal". Teclei o título no Google e fiquei surpresa - O tal artigo corria na rede com vários comentários. Não tenho entrado muito na Internet e provavelmente o assunto já esteja defasado, mas não vou me furtar a dar a minha palavrinha também porque, confesso: Ando enfastiada com esse tipo de discurso raso e moralizador, lamentavelmente, tão em voga, sobretudo na Net que muitas vezes suscita uma horda irada de demagógicos de plantão. 
É claro que a verdadeira autoria de muitos textos na Internet é bastante duvidosa, mas seus conteúdos continuam sendo lidos e aqui, mora um certo perigo – O de criar monstros de moralidade que devoram a verdadeira essência dos fatos.

Segue abaixo, o artigo em questão, supostamente escrito por uma psicóloga chamada: Karla Christine. Logo depois, as minhas mal traçadas linhas por falta de tempo, mas não menos sinceras.



Cazuza era marginal


"Fui ver o filme Cazuza há alguns dias e me deparei com uma coisa estarrecedora. As pessoas estão cultivando ídolos errados. Como podemos cultivar um ídolo como Cazuza?

Concordo que suas letras são muito tocantes, mas reverenciar um marginal como ele, é, no mínimo, inadmissível. Marginal, sim, pois Cazuza foi uma pessoa que viveu à margem da sociedade, pelo menos uma sociedade que tentamos construir (ao menos eu) com conceitos de certo e errado.

No filme, vi um rapaz mimado, filhinho de papai que nunca precisou trabalhar para conseguir nada, já tinha tudo nas mãos. A mãe vivia para satisfazer as suas vontades e loucuras. O pai preferiu se afastar das suas responsabilidades e deixou a vida correr solta. São esses pais que devemos ter como exemplo? Cazuza só começou a gravar porque o pai era diretor de uma grande gravadora. Existem vários talentos que não são revelados por falta de oportunidade ou por não terem algum conhecido importante.

Cazuza era um traficante , como sua mãe revela no livro. Admitiu que ele trouxe drogas da Inglaterra. Um criminoso. Concordo com o juiz Siro Darlan quando ele diz que a única diferença entre Cazuza e Fernandinho Beira-Mar é que um nasceu na zona sul e outro não. Estou horrorizada com o culto que fizeram a esse rapaz, principalmente por minha filha adolescente, ter visto o filme. Precisei conversar muito para que ela não começasse a pensar que bater na mãe, usar drogas, participar de bacanais, beber até cair e outras coisas, são certas, já que foi isso que o filme mostrou.

Por que não fazem filmes de pessoas realmente importantes, que tenham algo de bom para essa juventude já tão transviada? Será que ser correto não dá Ibope, não rende bilheteria? Como ensina o comercial da Fiat, precisamos rever nossos conceitos, só assim teremos um mundo melhor.

 Devo lembrar aos pais que, a morte de Cazuza, foi conseqüência da omissão dos seus pais, e uma educação errônea a que foi submetido. Será que Cazuza teria morrido do mesmo jeito se tivesse tido pais que dissesem NÃO, quando necessário? Lembrem-se que, NÃO, é a prova mais difícil de amor . Não deixem seus filhos à revelia para que não precisem se arrepender mais tarde. A principal função dos pais é educar. E essa educação já começa desde bebê. Não se preocupem em ser amigo de seus filhos. Eduque-os e mais tarde eles verão que você foi a pessoa que mais os amou. Foi, é, e sempre será, o seu melhor amigo, pois o verdadeiro amigo, não diz SIM, sempre." Portanto, NÃO, é a melhor maneira de dizer ao seu filho que você o ama e ele é a pessoa mais importante da sua vida." 

 

 

Logo de cara, a crítica feita ao filme, de caráter tão pessoal, me lembrou uma frase de Jorge Luís Borges : “ Não julgue o autor pela obra ou a obra pelo autor. Podem ser melhores ou piores”. O filme conta a estória de um artista, sua vida e sua obra. Porque raios - como diria minha mãezinha - um cantor e compositor deveria ser um exemplo de moral ? 

 

O tom do artigo, se referindo ao filme, como um acinte à moral e aos bons costumes me levou a concluir embasbacada que, seguindo essa linha de raciocínio teríamos que dar Adeus a dezenas, talvez centenas de artistas com suas biografias, jogando absolutamente todos numa vala comum: James Dean, Hendrix, Jack Kerouac, todos os Beatles, Rimbaud, Van Gogh, Piaf – O último, é um ótimo exemplo, pois sua cinebiografia está em cartaz, no momento. Um filme belíssimo ! Vale a pena assistir. Fui com meus pais – Ele, oitenta e sete anos. Ela, oitenta e dois. Os dois tiveram a graça de assistir Piaf, ao vivo, na boite “Vogue” nos idos anos cinqüenta. Que beleza, ouvi-los contanto essa passagem ! Saímos do cinema muito emocionados e garanto: Ninguém surtou ao assistir a trágica vida do “pequeno pardal” que, por excesso de drogas, morreu com quarenta e sete anos. Aparentava setenta ! Na saída, minha mãe lamentou: “Que tristeza ! A impressão que me dá é que a vida dá tanto para essas pessoas, mas também lhes tira tanto !

Mas, voltando a vaca fria, fiquei estarrecida ao ver a autora julgar e atacar os pais de Cazuza de forma tão generalizada, sobretudo Lúcia Araújo, sua mãe. Conheci Cazuza no começo dos anos oitenta, quando morei no Rio de Janeiro. Éramos todos tão jovens ! Ele era mesmo um cara rebelde. Lúcia o mimou, sim, mas também incentivou-o e muito em sua carreira... e não é que funcionou ! A música foi sua companheira até o final dos seus dias. Foi através dela que Cazuza lutou bravamente contra a sua doença. Fui checar. Seu legado quando morreu em 1990 foram: 126 músicas gravadas por ele mesmo, 34 por outros intérpretes e cerca de 70 inéditas. Será que isso não é trabalho ? Depois que Cazuza morreu, Lúcia mergulhou numa campanha incansável contra a AIDS criando a "Sociedade Viva Cazuza" onde, até hoje, centenas de pessoas portadoras do vírus HIV são beneficiadas. Culpar os pais pela morte dele denota, não só ignorância, mas também, uma boa dose de crueldade. Vale lembrar que Cazuza morreu de AIDS numa época em que a doença apenas despontava, sobretudo no Brasil. Pouco sabíamos sobre ela. Quantas famílias, na época, não deram às costas a parentes muito próximos por medo e preconceito da doença? 

O tal artigo me fez rememorar fatos que acho importante ressaltar, principalmente para os mais jovens que não viveram essa época -Lembrei-me quando Cazuza admitiu por fim, publicamente, ter contraído o vírus. A imprensa não o deixou mais em paz. Impossível esquecer de uma capa da revista “Veja”, estampando uma foto que ressaltava a magreza quase esquelética do cantor com a manchete sensacionalista "Uma vítima da Aids agoniza em praça pública". Amigos, na época, me contaram que, ao lê-lo, Cazuza teve uma forte depressão. Caetano Veloso encabeçando uma lista com muitos outros artistas deu a réplica com maestria publicando uma matéria num desses grandes jornais com o título: "Veja: A agonia de uma revista." Pois é, essa era a atmosfera que imperava na época: Terror, falta de informação e manipulação panfletária da doença, como se promiscuidade fosse uma característica toda própria e exclusiva de homossexuais. Acho que não é difícil imaginar o quanto foi difícil para a família, alvo da mídia, lidar com tudo isso.  

 

Mas o que mais me impressionou foi a comparação grotesca de Cazuza com Fernandinho-Beira-Mar. Será que cenas de festinhas com drogas e garotos se beijando deixaram a suposta autora tão desarvorada, a ponto de nivelar, absolutamente tudo, por baixo ? Fernando- Beira-Mar foi líder do Comando Vermelho, um dos maiores chefes do crime organizado envolvendo tráfico de armas, drogas, lavagem de dinheiro e, claro, muito homicídio. Compara-lo a Cazuza, me parece uma caça ensandecida às bruxas ! 

Cazuza não se dava ao trabalho de vender nada, muito menos droga. Era um filhinho de papai, como o próprio texto afirma. Cazuza não vendeu nem mesmo a sua imagem; hedonista que era, estava mais voltado para o seu prazer. Quem vendeu sua música e tornou-o famoso foi Ezequiel Neves, co-produtor e companheiro, um cara que entendia tudo de música naqueles tempos.

 

 

 

Eu não tenho CDs de Cazuza, mas quando o ouço, muitos dos seus versos continuam extremamente atuais. Sinto falta de sua verve meio agressiva e escandalosa. Frases que ele dizia com a maior naturalidade e viravam versos de excelente qualidade. Nunca fui sua fã de carteirinha, mas é impossível não se render a músicas como: "Todo amor que houver nessa vida". Impossível não reconhecer uma beleza genuína, misto de vida e obra que, ironicamente, gerou pérolas, algumas fruto do seu diálogo com a morte: “Vida louca, Vida breve, Já que eu não posso te levar, Quero que você me leve. Vida louca, Vida imensa, Ninguém vai nos perdoar. Nosso crime não compensa.”

 

Quando vi o filme de Cazuza, relembrei um tempo em que queríamos que o Brasil mostrasse a sua cara, pois ainda éramos ingenuamente inconformados, querendo saber quem paga pra gente ficar assim afinal, a democracia apenas começava e não tínhamos nadado tanto para morrer na praia ! Hoje, simplesmente cruzamos os braços afirmando que a corrupção nesse país é endêmica. Revendo aqueles tempos e chegando até os dias de hoje, penso que dá para dizer que Cazuza foi exemplo, sim: De uma big esperança com grandes sonhos de mudança.

 

Esse artigo, extremamente mal escrito e demagógico, que nos propõe ouvir a propaganda da Fiat ao invés das letras do poeta, me fez refletir sobre algo que soou como o avesso do avesso: O que seria, de fato, um marginal nos dias de hoje ? Confesso que fiquei confusa, sobretudo quando vejo, dentro do próprio governo, que deveria ser a síntese dos nossos anseios concretizados, um número cada vez maior de governantes mergulhados numa lama que em nada difere (e agora, vale a comparação) da lama onde serpenteiam marginais como Fernandinho-Beira-Mar. Que bom seria se eles tivessem um décimo do lirismo de um Cazuza. Seria realmente poético ver bandidos e policiais disparando suas metralhadoras cheias de mágoas, ao invés de balas. 
Houve um tempo em que os “românticos marginais” eram aqueles que sonhavam com um Brasil democrático. Quando a democracia se consolidou, eles deixaram a margem sem medo mas, e agora, quem somos ? Cidadãos com todos os nossos direitos adquiridos ? ...Há tanto ainda por adquirir e que nos é de direito! Acho que ando saudosa de uma mentira sincera, de uma verdade bem inventada, como dizia Cazuza. Talvez, porque o compromisso com a verdade parece ter evaporado por completo. A mediocridade alcançou um grau absurdo e mentiras nos são contadas sem a menor criatividade. Engula quem quiser a velha retórica esfarrapada. 

Quanto ao filme, achei excelente. Não é uma pretensa cinebiografia maquiada com uma cara bonitinha. Cazuza odiava hipocrisia. Lúcia Araújo foi corajosa - Longe de ser uma "mãezona falso moralista" que vende a imagem de um Cazuza bonzinho, autorizou o filme com toda as cenas que foram ao ar mostrando ao público como ele realmente era. O ator principal é mesmo fantástico ! Fiquei impressionada com a semelhança, não física, mas os trejeitos, a voz, até o olhar tão parecidos. Lembro-me claramente das vezes em que conversei com Cazuza – Na praia com seu vira-lata Wanderley de olhos claros ou no Baixo Leblon à noite, sempre com um copo de whisky na mão. Ele era assim mesmo: Um cara capaz de dizer algo brilhante e extremamente lúcido para, segundos depois, se transformar num garoto mimado. Um sujeito bem irrequieto, muitas vezes engraçado, completamente indomável, sonhador, levava tudo até os últimos limites. Cazuza era, acima de tudo, um cara exagerado, como ele mesmo se auto-definiu, e o ator, assim o interpretou de forma admirável.

E como o assunto é cinebiografia, fecho a crônica com a repetida indicação. Não deixem de ver o filme: "Piaf: Um hino ao Amor". A atriz, Marion Cotillard, de trinta e dois anos realmente transfigura-se encarnando Piaf. Levem seus filhos, como meus velhinhos me levaram. Não os privem de conhecer a vida e a obra de pessoas tão magníficas afinal, são elas com seus erros e acertos que nos fazem lembrar, no dia-a-dia tão corrido, o verdadeiro sentido da vida : Sonhar e amar, o mais que pudermos.



Um momento belíssimo do filme:
http://www.youtube.com/watch?v=7umXZNS5B-8&feature=related


* A quem possa interessar:
"Entrevista de Cazuza com Marília Gabriela (1988)"

http://www.youtube.com/watch?v=04GqlPrM2c8&feature=related

 

 

Ana Valéria Sessa
Enviado por Ana Valéria Sessa em 21/10/2007
Reeditado em 05/12/2009
Código do texto: T703886
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