Sabor de Paixão
Brasília é uma cidade de excelentes restaurantes. Não é à toa que os que para cá se mudam em poucos meses percebem as consequências desse fato nos ponteiros da balança. Comigo não foi diferente e agora corro atrás do prejuízo. Preciso esclarecer um detalhe: o que me atrai nos restaurantes atualmente além da boa comida, são os detalhes. Adoro restaurantes aconchegantes e cada vez me afasto mais do padrão Churrascaria com suas mil opções de comidas impessoais, seu barulho e ar condicionado siberiano.
Entre os restaurantes que mais gosto, está um restaurante português. Na primeira vez em que fui lá com meus amigos fiquei fascinada. Apesar de não ser exatamente uma fã de bacalhau, o “Bacalhau com Natas” que provei era um verdadeiro contato com o Nirvana. Sal na medida certa, cebolas em fatias finíssimas, batatas idem, o creme de natas delicioso. Mínimo, o restaurante é voltado para uma quadra residencial tranquila e silenciosa.
Entre os atrativos que esse restaurante oferece, está o garçom. Não, não se trata de um garçom barulhento, espaçoso. É justamente o contrário. Alto e magro, o garçom, único do estabelecimento, lembra um poeta romântico do final do século XIX, destes que passam fome, sofrem e morrem por amor. Circunspecto, ele anuncia num tom solene o andamento do preparo dos pratos na cozinha. Sem dúvida, um personagem. Como sempre vou lá aos domingos, nunca tive pressa alguma. Enquanto os amigos e eu aguardamos os pratos, vamos jogando conversa fora, ouvindo o ruído das folhas secas se arrastando pelo chão da quadra. Momentos em que, como na canção de Dominguinhos, estamos nos braços da paz.
Num desses domingos, aconteceu um fato curioso. Ao chegarmos, percebemos que havia um grupo grande, comemorando um aniversário. O garçom nos avisou que o serviço demoraria mais do que o costume. Não nos importamos, afinal, o que são alguns minutos a mais diante do maravilhoso bacalhau e do arroz branco soltinho, salpicado de alho frito e crocante servido diretamente da panela para o nosso prato? Ocupamos nossa mesa decididos a esperar.
Após a refeição, como sempre fantástica, decidi que desta vez provaria uma sobremesa. Meus amigos concordaram, entusiasmados. Mas eis que então, o inesperado aconteceu. Ao informar o garçom do nosso desejo, ele mudou de expressão. De pé ao lado da nossa mesa, seu rosto adquiriu feições ainda mais trágicas. Seus olhos buscaram o chão e ele colocou uma mão sobre a outra, como fazem os apresentadores dos jornais de TV quando focalizados de corpo inteiro:
- Infelizmente, dessa vez ficarei em débito. (Pausa) não será possível atender ao seu pedido.
- Mas não há nenhum doce? - Perguntei surpresa.
- Não! (Pausa) infelizmente, a nossa confeiteira... (pausa, sem me encarar nos olhos)
Um de meus amigos, educadíssimo, mostrou-se solidário:
- Ela... ela faleceu?
O garçom levantou a cabeça com um vigor inesperado. Fitando um ponto distante qualquer, respondeu como se recitasse um texto de Shakespeare:
- Não! Fugiu!
Ficamos atônitos. Observando nosso espanto ele completou:
- Fugiu com o fornecedor de chouriça...- E retirou-se rapidamente para o interior do restaurante.
Ficamos todos sem ação. Fugiu? Como assim fugiu? Quem ainda foge nos dias de hoje? Imediatamente me vem à mente uma crônica do poeta Affonso Romano de Sant ‘Anna, fugir por amor, onde ele contrapõe ao ato banal de se juntar, o ato tempestuosamente romântico de fugir, citando fugas da ficção como Romeu e Julieta, e fugas da vida real consumadas ou não, como a do poeta Neruda e sua amada Laura Arué.
Mas voltemos à cozinha de nosso pequeno restaurante português. Num dia como outro qualquer, a confeiteira, depois de misturar na tigela a farinha de trigo e o açúcar, enxuga com as costas da mão a testa cansada. Na tigela acrescenta as gemas e a baunilha. As claras em suspiro virão em seguida. Mas eis que um som vindo de fora a desperta. Ofegante, o fornecedor de chouriça se aproxima do balcão indagando pelo proprietário. A confeiteira, do outro lado do balcão, limpa as mãos brancas no avental. Quando seus olhares se encontram, ela sente seu coração disparar.
O que teria acontecido no intervalo entre este olhar e a decisão de jogar as panelas para o alto, abandonando caixas e caixas de bacalhau, sacos e sacos de açúcar, garrafas e mais garrafas de azeite de oliva? Jamais saberemos. Mas como uma heroína romântica, a confeiteira deixou-se arrebatar pela paixão, deixando órfãos dos seus doces os clientes do restaurante. Conhecedora dos segredos que transformam uma lista de ingredientes em receitas deliciosas, arriscou-se a viver uma história de amor. Com açúcar e, talvez, também com afeto.
Demoramos uns dois meses para voltar ao restaurante. Devo confessar que durante esse período, me surpreendia pensando na confeiteira e no seu amado, o fornecedor de chouriça. Como estariam? Acomodados na mesa de sempre, pedido feito, não me contenho. Quando o garçom se aproxima com as bebidas, pergunto, timidamente:
- E a... Confeiteira... ela...?
Para minha surpresa, o garçom esboça um sorriso e responde radiante:
- Ela está de volta!
Após o almoço magistral, degusto um Pastel de Belém. Não me atrevo a perguntar mais nada. Não é preciso. As folhas secas continuam caindo das árvores que rodeiam a quadra e nada parece ter mudado. Mas a sobremesa, essa sim, tem um sabor diferente. Um sabor de aventura e paixão.