A Visita

Você culpa seus pais por tudo

Isso é absurdo

São crianças como você

O que você vai ser

Quando você crescer?

Renato Russo em Pais e filhos

O cheiro da comida e o volume alto do rádio dominam o ambiente. Na pequena cozinha branca e azul, esfomeadas, recém chegadas da escola e ainda de uniforme, minha irmã e eu olhávamos fixamente para os pratos: omelete de carne moída, arroz branco, farofa, feijão e salada de alface com tomate. Como qualquer criança, tudo que nós queríamos era avançar sobre eles. Impossível. Sem ousar pronunciar uma única palavra, nos entreolhávamos, cientes do limite que nos era imposto.

Ninguém podia se servir antes de meu pai e minha mãe nos observava com rigor. Sentado à mesa, indiferente a nossa fome, meu pai ouvia atento no rádio colocado sobre a geladeira, um programa de futebol. Essa cena era comum na minha infância. Várias vezes ficamos em frente aos pratos do almoço aguardando e ouvindo resenha esportiva, até que enfim, meu pai se decidisse a almoçar. Então, minha mãe o servia primeiro para só então termos a autorização para comer. Quantos anos se passaram? Quarenta? Quarenta e cinco anos?

Aguardo o sinal fechar para que possamos atravessar a rua e então dou o braço a meu pai. O homem que se apóia no meu braço lembra aquele cujo simples olhar era suficiente para nos fazer estremecer. Mas hoje, seu olhar é outro. Seus olhos agora vagueiam de um ponto a outro, sem fixar-se em nada. Atravessamos o Eixo Monumental, nessa cidade cujas ruas não têm nome. Do alto da Torre de TV, mostro a ele os pontos turísticos: Esplanada dos Ministérios, Congresso Nacional e Senado, cenários que meu pai viu nascer, transmitidos numa tv preto e branco. Ele me olha enquanto eu arrisco uma explicação. Sobre nós, o lindo céu de Brasília sem uma nuvem sequer. Percebo que meu pai não me ouve. Tento afastar um pensamento: Por que precisamos esperar tanto tempo?

Passei a adolescência tentando agradar a meu pai. Mesmo morando na mesma casa, nossos contatos, na maioria das vezes, eram motivados pela cobrança e preocupação com as notas e o comportamento. Existia entre meu pai e suas filhas uma distância não só respeitosa, mas de temor. Os raros momentos em que saíamos só nós dois, era quando, eventualmente, meu pai levava o carro para a oficina aos sábados pela manhã. Como não havia meninos em casa, quem o acompanhava nesses programas era eu. Enquanto ele aguardava, eu corria para lá e para cá entre peças e pneus. O melhor vinha depois: o almoço no Mercado Modelo. Lembro do cheiro maravilhoso que saía das panelas fumegantes. Meu pai me permitia comer o que quisesse, escolhendo diretamente nos fogões onde repousavam as iguarias, preparadas e servidas pelas baianas: caruru, vatapá, moqueca de peixe. O som do berimbau embalava a capoeira e eu, almoçando sozinha com meu pai, me sentia a mais feliz das criaturas.

Agora no restaurante, faço o prato de meu pai. Verdurinhas cozidas, comida pastosa, pois ele alega dificuldade para mastigar. Esta mão que o serve seria minha ou de minha mãe? Observo como o destino nos prega peças. Aos oitenta e oito anos, meu pai fez sua primeira viagem de avião. Mesmo após três anos morando em outra cidade, nunca imaginei receber a sua visita. Não foi a viagem que sonhei na minha infância e adolescência, mas foi a que ele quis. Como sempre, aliás.

Na fila para pesar meu prato, me volta a cena da compra do primeiro carro da família, um fusca vermelho placa 3049. Foi um acontecimento. De vestidos rodados e laços no cabelo, eu e minha irmã entramos no carro para um passeio até o Farol da Barra. Respiro fundo e sinto o cheiro do carro novo, revejo seu estofamento bege. O momento era solene e minha mãe diz: “Seu pai está dirigindo, não pode falar!”. Lembro da nossa empolgação e agora, ajeitando o cinto de segurança em torno de meu pai, sinto saudade daquele carrinho vermelho apelidado por nós de “Tartaruguinha”.

Durante a viagem, meu pai alternou passeio e descanso. Nas horas em que com ele estive, fiquei feliz com a experiência inédita de cuidar de alguém. Por diversas vezes partiu dele a iniciativa de buscar meu braço para andar. Percebi que a ação do tempo transformou meu pai em um homem mais magro, menor, distante como se já fizesse contato com os anjos. O passeio chega ao fim. Ao nos despedirmos, percebo sua emoção. Sinto meu coração apertado, as lágrimas me vêm aos olhos e faço força para não chorar. Hoje tenho clareza que meu pai não poderia me dar aquilo que jamais teve. Mas sei também que muito do que sou, a ele eu devo. Observo que assim como a “tartaruguinha”, meu pai não teve pressa para envelhecer. Decido ser uma filha melhor no futuro. Futuro que para meu pai, é hoje.

Vania Rebelo
Enviado por Vania Rebelo em 17/08/2020
Código do texto: T7038150
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.