Cuidadores

É preciso ter um dom para cuidar de idosos, ou mesmo apenas conviver de perto com um ou mais deles. Isso não é nenhuma novidade, Temos tendência a gostar mais de ficar entre os nossos pares, gente que regula em idade com a gente. Nem muito pra lá, nem muito pra cá. Em ambas as direções. Até porque cuidar de crianças também requer dose cavalar de paciência. Mas com essas costumamos ser mais condescendentes, são mais graciosas, amorosas, bonitinhas. Há também, é claro, aqueles que gostam de ficar com pessoas mais jovens, e aí no sentido literal: jovens. Mas aí rolam outros motivos, como a procura por parceiros ou simplesmente porque não se dão conta de que já não são mais jovens, e assim pensam que se trata de sua tribo legítima.

Quando me refiro a idosos, me refiro aos muito idosos, cuja idade regula com a de nossos pais (se já formos meio idosos também) ou de nossos avós. Quando se é jovem, a razão para se irritar com os idosos está mais ligada ao desperdício de tempo gasto com eles, quando se poderia estar com pessoas muito mais interessantes, numa balada, ou apenas sozinho no quarto fazendo qualquer outra coisa. Quando não se é jovem, a razão pode ser outra, mais perturbadora. Aquele idoso pode representar uma visão de seu próprio futuro e, muitas vezes, essa visão não é agradável. Primeiro, porque o quadro pode ser de doença, incapacidade, demência, ou seja, qualquer coisa que não se deseja pra si mesmo. Segundo, porque a gente passa a vida inteira investindo para o futuro e não quer antever esse futuro dessa forma. Por fim, e mais importante, porque, se o idoso tem alguma relação familiar ou afetiva, ou ambas, com a gente, um turbilhão de sentimentos deixa esse cenário ainda mais complicado. Tenho cá comigo que apenas nas condições de filho e às vezes de neto ou irmão é que a convivência com um idoso tem chance de transcorrer de maneira tranquila, em que episódios de carinho sincero, paciência e dedicação são mais frequentes do que os demais, onde um ou outro ou ambos os lados, cuidador e cuidado, sofrem de alguma forma.

Mas há os talentosos, os dotados de um dom especial, que até sentem prazer em se dedicar a cuidar de idosos. Podem fazer por dinheiro, como profissão, e ainda serão poucos os que o fazem também por prazer. Será que o treinamento que esses profissionais recebem é capaz de incutir-lhes paciência e carinho para dar? Duvido. Uma grande parcela dos idosos, no entanto, acabam ficando aos cuidados de familiares afins, como noras, genros, sobrinhos, etc. As primeiras são as piores. Ou melhor, para as primeiras, é pior. Se conviver muito com a sogra pode ser muito chato, cuidar dela e ainda quando ela for muito idosa pode ser bem complicado. Enquanto tudo de ruim que porventura viveram no passado vem a tona para a nora, em sentido contrário e na mesma proporção, a sogra passa a amar a nora e a ser eternamente agradecida. Ou pelo menos passa a dizer isso, e o melhor é mesmo acreditar. Mas acreditar nisso implica sentir uma culpa enorme por estar de corpo presente ali e querendo estar a anos-luz de distância. E não é só isso. Sente-se culpa também por não sentir compaixão ou por não ter a paciência devida com alguém que é idoso, simplesmente pelo fato de ser idoso. Oras, ser idoso não deve tornar uma pessoa melhor ou piro do que era antes. Se ele se torna mais manso, mais lento, menos agressivo, provavelmente é porque também precisa se defender. Sabe que, a essa altura, precisa dos outros e, particularmente, de quem está por perto. Da mesma forma, por trás da culpa do cuidador, está a esperança de que no futuro o seu cuidador tenha a generosidade que lhe falta.

Cobrar essa grandeza de toda a humanidade, nessas horas, significa alimentar a esperança de que terá para si, no futuro, aquilo que não consegue dar no presente. Afinal, você é apenas um representante da humanidade. Esse seu jeito seco, ingrato e, as vezes, cruel pode ser um defeito só seu e de mais alguns, mas não da maioria da humanidade. Um desvio criado, afinal, por todas as atitudes dessa exata pessoa que hoje está sob seus cuidados. Mas haverá certamente alguém melhor do que você para cuidar de suas mazelas na sua velhice. E a desconfiança de que isso não acontece assombra sua mente cada vez mais. E a culpa só pode ser de quem insiste em viver para lhe mostrar que, para se tornar uma pessoa melhor, para ambas as partes, às vezes nem vivendo cem anos pode ser suficiente.

(26 Janeiro 2015)

Anelê Volpe
Enviado por Anelê Volpe em 16/08/2020
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