Kafka
Penso que já escrevi isto no Recanto, mas vou repeti-lo. O primeiro livro que li de Kafka foi "A Metamorfóse" e, como na altura tinha uns 15 ou 16 anos, fiquei impressionada, já que nunca tinha lido nada semelhante. Na altura ainda não conhecia o conceito de "kafkiano". Hoje conheço e uso. Olho em volta e tudo me parece perturbadoramente kafkiano. Porém, antes de conhecer o conceito e de ter tido um professor em Coimbra que era especialista em Kafka, era muito evidente para mim que o escritor checo escrevia sobre a mais funda solidão do ser humano. A incapacidade de comunicar. E o medo de comunicar. Eu acho-me tão maravilhosa quando estou sozinha, isto é, sou simpática, canto, rio de coisas que leio e oiço, danço em frente ao espelho, declamo poesia em voz alta, faço palestras para as paredes e, por vezes, até como com as mãos! Pode ser-se mais simpático do que isto? Ou estarei enganada? Mas haviam de me ver na multidão. Dou uns risos que são só um movimento involuntário dos lábios. Digo obrigada e por favor e se não se importa, como se estivesse a ser avaliada para um concurso de boas maneiras. Sigo pelo caminho mais longo, se for também o mais isolado. Com os amigos, dependendo do grau de intimidade e afecto vou de uma grande afabilidade e tontice até uma quase rigidez. Com certas pessoas, à medida que o tempo passa vou ficando mais e mais hirta. Eu não quero, eu faço um esforço, mas é escusado. Como é penoso estar com os outros, ou melhor, saber estar com os outros. Veio isto a propósito de Kafka, o escritor da solidão sem apelo, da solidão irremediável. Li tudo dele, mas os contos, especialmente os mais curtos leio-os e releio-os várias vezes. O livro está permanentemente no meu quarto, não vá eu ter uma crise de ansiedade e precisar de que alguém me diga que não sou a única pessoa solitária no mundo.
Cito:
«Era de manhã bem cedo, as ruas limpas e desertas. Eu ia a caminho da estação. Ao comparar o relógio da torre com o meu, apercebi-me de que afinal era bastante mais tarde do que eu julgara, pelo que tinha de apressar-me. O choque da descoberta fez com que eu começasse a duvidar do caminho, ainda não conhecia a cidade suficientemente bem. Felizmente estava um polícia ali perto. Corri para ele e, ofegante, perguntei-lhe o caminho. Ele sorriu e retorquiu: "Estás a perguntar-me o caminho a mim?" "Sim", disse eu. "Eu sozinho não o encontro." "Desiste! Desiste!", disse ele, e virou-me as costas num movimento brusco e repentino, como quem pretende ficar sozinho com o seu riso.»
Lindo!!
KAFKA, Franz, «Contos», Lisboa, Cavalo de Ferro, 2004, p.119